A Igreja celebra neste domingo a Festa do Baptismo de Jesus. E assim termina o Natal.
No domingo passado celebrámos a manifestação de Deus aos Magos, isto é, a todos os povos; oito dias depois celebramos a manifestação do Pai que proclama Jesus como seu Filho muito amado. Eu também fui baptizado. E quase todos que pegarão nesta Chama também. Boa ocasião para pensar.
Uma vez baptizados, baptizados para sempre!
O Baptismo recebe-se apenas uma vez e para toda a vida. Aconteça o que acontecer, quem foi baptizado sê-lo-á toda a vida.
Pelo Baptismo a Igreja abre as portas e insere os iniciados, os baptizados, na comunidade dos cristãos. Aquele que recebe sobre a sua cabeça a água e sobre quem é invocado o Espírito Santo torna-se membro da Igreja e entra no rio da fé, da ternura e confiança na salvação de Deus.
Um baptizado pode crescer e chegar a viver sem jamais ser cristão. Porém, a marca do Baptismo permanece, jamais fenece. Se não é activada fica pelo menos como memória e desafio, como se alguém dissesse, sem forçar ou impingir: lembra--te que és baptizado!; ou: sê e vive o que és!
Nunca foi fácil ao baptizado viver como cristão. Ainda por estes dias um insuspeito pensador francês, agnóstico, declarava que mundialmente a comunidade cristã é a mais perseguida, a mais preterida e menos defendida, ao invés de outras. A mesma referência fez o papa Bento XVI recentemente. (Singelamente quer-me parecer que ambas afirmações são simultâneas mas não interdependentes!)
Nunca foi fácil ser-se cristão, porque ao baptizado exige-se testemunho decidido e corajoso daquele abraço em que foi carinhosamente envolvido pelo Pai, pelo Filho e pelo Espírito Santo.
Tal abraço não deve guardar-se e proteger-se no aconchego do album das memórias. Exige ser dito e manifesto, lançado aos ventos e às marés da história. Prova disso é o imenso catálogo de testemunhas que sofreram todo o tipo de violências por serem cristãos.
O cristão é no mundo sinal, sal e luz. Mas quem disse que o mundo está interessado em sinais e luz? O leitor sabe tão bem quanto eu que a ausência de luz e as dissimulações favorecem quem é hábil a deslizar no lodo da noite.
E porque haveriam esses de querer perder a vantagem de predadores? Sim, os cristãos sempre encontraram incompreensões e hostilidades sérias nas sociedades a que pertenceram por direito. Atendendo aos pormenores da paisagem social em que nos inserimos vê-se bem que a sociedade que nos leva e nos lava na pia baptismal e a nosso lado sutenta por nós a luz da vela da fé é a mesma que está interessada em que não exerçamos o nosso compromisso baptismal.
Já reparou na incongruência: primeiro lavam-nos na água do Baptismo, mas não tarda atiram-nos lama bem tóxica que suja o que antes Deus lavou! Primeiro abrem-nos o caminho do bem e iluminam-nos, mas não tarda expõem aquela chama pequenina à frialdade do vento gélido para que só vejamos miragens enganosas!
O Baptismo tem de ser renovado cada dia. Tal como cada dia lavamos o corpo para o renovar e tonificar, tal como a cada hora não dispensamos a luz para os nossos passos, nem a ginástica para os músculos, nem uma pitada de sal que dê sabor à comida que comemos.
Imagine-se os comentários de escândalo quando o sacerdote aconselha alguns pais a não baptizar os filhos: — Pode lá ser! A uns permitem tudo, a outros dão nada! Os padres vão acabar com a Igreja! Noutro tempo não ficava assim!
Pois não, pois sim.
E quem denuncia a sociedade que sufoca o rebento da vida nova recebida no Baptismo? E quem cobra à sociedade por marginalizar e obstruir os que se propõem viver o Evangelho?
Parecem perguntas inócuas, não parecem? Talvez estas outras que seguem ajudem a perceber as formuladas atrás. Repare e responda se souber: Pode-se confessar a fé em Cristo e viver o individualismo que alastra no império do capitalismo? E ser-se cristão desprezando os trabalhadores, recusando-lhes direitos, não pagando o seu suor a tempo? Podemos entrar em esquemas para não pagar impostos nem assumir as responsabilidades sociais? Podemos, quando no mando e no poder, usar de arbitrariedades, atentar contra direitos e obstruir a justiça? Descansam bem e benzem-se ao deitar, mas a quem devem as fortunas, de quem são os sacos de notas sobre que se sentam, a quem devem o poder com que calcam? Podemos viver à luz do dia duma maneira, e no segredo do aconchego das telhas do lar — a que ninguém assiste — de outra bem mais católica?
Não teriam muitos que se envergonhar por causa da vida que levam, e não pelo Baptismo que receberam e pela fé (privada) que dizem professar? Podem os filhos de Deus, isto é, os baptizados, apresentar-se e proceder como os demais que vivem como se o amanhã não exista'
O cristão que por medo ou comodidade evita ser reconhecido como tal não merece o nome; nem talvez mereça ser homem. Porque o Baptismo que recebemos é para sempre e para ser visto. E o Espírito que recebemos é de fortaleza, jamais de duplicidade, de ocultação ou negação.
Chama do Carmo I NS 92 I Janeiro 9, 2011
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