De quando em vez o Evangelho é amargo, duro e exigente. Verte-se em páginas difíceis de ouvir porque nós apreciamos as páginas doces que nos envolvam de ternura, sem, aparentemente, exigirem muito de nós. Contudo, também é bom e estimulante que nos embrenhemos por páginas de difícil acesso como a de hoje.
Neste Domingo Jesus fala da radicalidade da entrega e do dom de nós mesmos. E de copos de água.
O dar tem pouco mercado. Mais a mais se parecer que dando se receberá pouco em troca. A cultura actual ditou a morte de quem dá sem receber. Pessoas assim, julga-se, extinguem-se por não ter futuro. É necessário porém rasgar novos horizontes de dádiva, porque só dá quem é rico e o rico ainda que tenha muito mas não se saiba dar não é afinal rico. Não é fácil proclamar e ouvir a página do Evangelho deste décimo terceiro domingo em tempos tão áridos como os nossos, que produziram uma cultura tão centrada no eu e tão revoltada contra o nós.
Até para nós, cristãos mais assíduos, é duro este Evangelho no qual Jesus proclama a primeira condição para o seu seguimento: a radicalidade.
Sim, nós gostamos de radicalidade e de desportos radicais, mas num fim de semana e de capacete na cabeça. Desafiem-nos para um programa de desportos que despoletem a adrenalina, que nós aceitamos embarcar na onda, e... nem nos lembraremos da Missa.
É curtir adrenalina e já está!
Porém, não é disso, que nos fala hoje Jesus, quando diz: «Quem ama o pai ou a mãe mais do que a Mim, não é digno de Mim; e quem ama o filho ou a filha mais do que a Mim, não é digno de Mim.»
Para nós ou para a grande maioria de nós, falem-nos de radicalidade, sim, mas não desta, não da de Jesus. A de Jesus é dura e exigente: obriga a colocá-lO acima de tudo, a oferecer-Lhe a primazia!
Na proposta que Jesus nos estende o amor a Ele está acima de tudo: acima do dinheiro, da carreira, do sucesso, dos pais e dos filhos.
Na sua proposta nada se Lhe antepõe e Jesus não se propõe competir com os nossos amores; foi Ele, aliás, quem disse que amar o pai ou o filho, amar os outros e até os inimigos é amá-lo a Ele. Que quem não ama os outros não o ama a Ele! Jesus não entra em campeonatos para ser o primeiro. Pelo contrário. Jesus afirma algo bem maior: que só há um absoluto. Que Ele é o único absoluto, o único definitivo, a única fonte do seu caminho, a única base do Reino da vida, que Deus e a sua vida, o seu amor e justiça e a sua verdade são o único absoluto.
A bem dizer e a mal interpretar as palavras de Jesus — se as ouvíssemos com ouvidos de ouvir — fugiríamos quase todos de Jesus e das suas propostas! É tão duro ouvi-lo hoje! Porém, como é tão verdade o que nos diz: só Ele é fundamento da nossa vida, só Ele pode ser a raiz dos nosso projectos! Tudo o restante se esboroa, tudo é falso; tudo o resto é frágil e inconsistente. Tudo é relativo, menos Deus: leis e tradições, acertos, concertos e emendas, amores, desamores e guerras passam, porque tudo o que é relativo passa.
A proposta de Jesus é radical. Funda-se Nele, por isso permanece. Tanta radicalidade, surge, porém, temperada por um fundamento humano: a ajuda dos iguais, dos peregrinos da fé como nós. Os que aceitamos seguir o caminho de Jesus devemos ajudar-nos uns aos outros, como diz Santa Teresa de Jesus:
«Nestes tempos andam as coisas de Deus tão fracas, que é necessário que os amigos de Deus se ajudem, fazendo costas uns com os outros, para seguir em frente.»
Creio que é a isso que Jesus se refere quando fala em acolher um qualquer dos seus discípulos. Acolher alguém significa compreender, ajudar, solidarizar-se, apoiar.
Acolher significa tantas vezes o contrário do que nós, católicos, nos fazemos uns aos outros: Quão atreitos somos nós à crítica e à desconfiança, ao bota-abaixo e à rasteira. E quão lestos somos a deitar gelo a pequenas iniciativas que brotam como rebentos e a pequenos movimentos de revitalização eclesial!
Jesus pediu para os seus discípulos pequenas dádivas do tamanho dum copo de água fresca! São dádivas do estilo: mostrar um sorriso acolhedor, prestar atenção para além do tempo plausível, levantar o ânimo decaído, um pequeno gesto de solidariedade, uma breve visita, um aceno de apoio e de amizade.
Será isso tão difícil?
Como poderemos nós, emproados de tão sós e apenas eu, comungar sem comungarmos os que sofrem? Ou, o que é o mesmo: como o poderemos comungar a Ele e fecharmo-nos aos outros, não ter para eles um tantinho de sorriso como três dedos de água fresca?
Chama do Carmo I NS 116 I Junho 26 2011
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