Em Junho de 1973, centenário do nascimento de Santa Teresinha, o futuro Papa João Paulo I escreveu estas linhas:
Cara Teresinha,
Eu tinha dezassete anos quando li a sua autobiografia. Foi para mim como um raio. "História de uma florzinha de Maio", definiu-a. A mim pareceu a história de "uma barra de aço" pela força de vontade, pela coragem e pela decisão que ela exala. Escolhida uma vez a estrada da completa dedicação a Deus, nada lhe impede o passo: nem doença, nem contradição externa, nem nuvem ou trevas interiores.
Recordo-me que quando me levaram doente para o sanatório, em anos nos quais penicilina e antibióticos não tendo sido inventados, ao doente se predizia, mais ou menos vizinha, a morte, eu me envergonhei. Envergonhei-me de provar um pouco de medo: "Teresa com vinte anos, até então sã e cheia de vitalidade – disse a mim mesmo –, foi inundada de alegria e de esperança, quando sentiu subir à sua boca a primeira emoptise. Não só, mas, atenuando o mal, trata de levar a termo o jejum em regime de pão seco e água, e tu, queres temer? És sacerdote, desperta-te, não sejas tonto!"
Relendo-vos, por ocasião do centenário do nascimento (1873-1973), tocou-me o modo com o qual amastes a Deus e ao próximo. Santo Agostinho escreveu: "Caminhemos para Deus não com o caminhar, mas com o amar". Também Vós chamastes à vossa estrada "via do amor". Cristo tinha dito: "Ninguém vem a mim se o meu Pai não o atrair". Em perfeita linha com estas palavras, Vós vos sentistes como um "passarinho sem força e sem asas"; em Deus, porém, vistes a águia que descia para levar-vos às alturas sobre suas próprias asas.
À graça divina chamastes "elevador", que vos elevava a Deus rapidamente e sem fadigas, sendo "muito pequena para subir a áspera escada da perfeição". Escrevi acima: "sem fadigas". Entendamo-nos: isto sobre um aspecto; sobre um outro, porém... Somos [a contemplar] aos últimos meses; a vossa alma avança em uma espécie de galeria obscura, não vê nada daquilo que antes via claramente. "A fé, escrevestes, não é um véu, mas um muro!" Os sofrimentos físicos são tais que a fizestes dizer: "Se não tivesse a fé, dar-me-ia à morte". Não obstante isto continuastes a dizer com a vontade ao Senhor que o amava: "Canto a felicidade do Paraíso, mas sem provar alegria; canto simplesmente que quero crer". As últimas palavras vossas foram: "Meu Deus, eu vos amo!" Ao amor misericordioso de Deus vos oferecestes como vítima. Tudo isto não vos impedia de gozar das coisas belas e boas: antes da última doença com alegria vós pintastes, escrevestes poesias e pequenos teatros sacros, interpretando algumas partes com gosto de uma fina actriz.
Na última doença, em um momento de retoma, pedistes alguns bombons de chocolate. Não tivestes medo das vossas próprias imperfeições, nem mesmo de algumas vezes adormeceres pelo cansaço durante a meditação ("os meninos dão prazer às mães também quando dormem!"). Amando o próximo, vos esforçastes por tornar os pequenos serviços úteis mas escondidos e de preferir as pessoas que vos incomodavam e que menos consideravam o vosso carácter. Por detrás do seu rosto pouco simpático buscavas o rosto simpaticíssimo do Cristo. E não davas conta deste esforço e desta busca: "Quanto é mística, na capela e no trabalho – escrevia sobre Vós a priora – e da mesma forma é bem humorada a ponto de fazer-nos soltar em risos durante a recreação". Estas poucas linhas, que sublinhei, estão bem longe de conter a vossa completa mensagem aos cristãos. Bastam, todavia, para assinalar algumas directivas para nós.
O verdadeiro amor de Deus casa-se com a firme decisão tomada e, quando necessária, renovada. O indeciso Enéia do Metastasio, que disse: "Intanto confuso, nel dubbio funesto, non parto, non resto" não era vestido pelo verdadeiro amor de Deus. Mais adaptado ainda é o vosso compatriota o Marechal Foch que durante a batalha da Marna telegrafava: "O centro do nosso exército cede, a esquerda se retira, mas eu ataco assim mesmo!" Um pouco de combatividade e de amor ao risco não diminui no amor ao Senhor. Vós o tivestes: não é à toa que sentistes em Joana D'Arc uma "irmã de armas". No "Elixir do amor" de Donizetti bastou a "furtiva lágrima", despontada sobre a face de Adina, para serenar e fazer beato o enamorado Nemorino.
Deus não se contenta somente de lágrimas furtivas. Ele gosta de uma lágrima quando a ela corresponde dentro, na vontade, uma decisão. Assim é também com relação às obras externas: essas são agradáveis ao Senhor só se correspondem a um amor interno. O jejum religioso tinha até mesmo desfigurado as faces dos fariseus, mas a Cristo não agradou aquelas esquálidas faces, porque sabia que o coração dos fariseus estava distante de Deus. Vós escrevestes: "O amor não deve consistir nos sentimentos, mas nas obras". E acrescentastes: "Deus não tem necessidade das nossas obras, mas só do nosso amor". Perfeito! Com Deus se pode amar um monte de outras belas coisas. Com um pacto: nada seja amado contra ou sobre ou na mesma medida de Deus. Por outras palavras: o amor a Deus não deve ser exclusivo, mas prevalente, ao menos na estimação.
Jacob enamorou-se um dia de Raquel: para tê-la, prestou serviço por sete anos, que "lhe pareceram, diz a Bíblia, poucos dias, de tanto que a amava" e Deus não teve nada a reprovar, antes o abençoou. Aspergir água benta e bendizer todos os amores deste mundo é uma outra coisa. Infelizmente de tanto fazê-lo hoje algum teólogo, influenciado pelas ideias de Freud, Kinsey e Marcuse, elogia a "nova moral sexual". Se não querem a confusão, contrariamente a estes teólogos, os cristãos deverão olhar para o Magistério da Igreja, que goza de especial assistência, seja para conservar intacta a doutrina de Cristo, seja para adaptá-la de modo conveniente aos tempos novos. Buscar o rosto de Cristo no rosto do próximo é o único critério que nos garante de amar seriamente todos, superando antipatias, ideologias e meras filantropias.
Um rapaz, escreveu o velho arcebispo Perini, bate uma tarde à porta de uma casa: está com roupa de festa, uma flor na orelha, mas, dentro, o coração lhe bate forte: quem sabe como a moça e os seus familiares acolherão o pedido de matrimónio que ele timidamente quer fazer? Para abrir a porta vem a moça em pessoa. Uma olhada e fica toda ruborizada, o prazer evidente (falta a "furtiva lágrima") da senhorita serena-o, o coração se alarga. Entra; ali está a mãe da moça; parece-lhe simpaticíssima, veio-lhe até o desejo de abraçá-la. Está o pai, viu-o centenas de vezes, mas nesta tarde parece-lhe transfigurado por uma luz especial. Mais tarde chegam os dois irmãos; abraços e saudações calorosas. Pergunta-se Perini: o que sucede a este jovem? O que são todos estes amores desabrochados improvisadamente como fungos? Resposta: não se trata de amores, mas de um amor só: ama a rapariga e o amor que lhe tem difunde-se sobre todos os seus parentes. Quem ama seriamente a Cristo não pode rejeitar o amor aos homens, que de Cristo são irmãos. Ainda que sejam feios, maus e incómodos, o amor deve transfigurar-lhes um pouco.
Amor em gotas. Às vezes é o único possível. Não tive jamais a ocasião para pular na água de uma torrente para salvar alguém que estivesse em perigo; mas muitíssimas vezes me foi pedido que emprestasse alguma coisa, de escrever cartas, de dar modestas e fáceis indicações. Não encontrei jamais um cão hidrófobo pela rua; mas muitas moscas e pernilongos; jamais tive perseguidores que me batessem, mas muitas pessoas que me incomodam falando forte pela rua, com o volume da televisão um pouco alto ou, ainda, com pessoas que fazem um certo rumor quando tomam a sopa. Ajudar como se pode, não levar muito a sério, ser compreensivos, manter-se calmos e sorridentes (o mais possível) nestas ocasiões, é amar o próximo sem retórica, mas num modo prático. Cristo muito praticou esta caridade. Quanta paciência em suportar as desavenças que os Apóstolos faziam entre si. Quanta atenção no encorajar e louvar: "Jamais encontrei tanta fé em Israel", diz do Centurião e da Cananeia: "Vós ficastes comigo também nos momentos difíceis", diz aos Apóstolos. E uma vez pede, por favor, a barca de Pedro. "Cheio de toda cortesia", disse Dante. Sabia colocar-se na veste dos outros, sofria com eles. Protegia, defendia, além de perdoar os pecadores: assim a Zaqueu, assim à adúltera, assim à Madalena.
Vós, em Lisieux, caminhastes no rasto dos seus exemplos; nós devemos fazer o mesmo no mundo. Carnegie conta daquela senhora que um dia preparou para os seus homens, marido e filhos, a mesa bem preparada e florida, mas com um punhado de feno sobre cada prato. "O quê? Feno nos dais hoje? lhe disseram. "Oh, não - respondeu -, vos trago logo o almoço. Mas deixai que vos diga uma coisa: há anos que vos preparo a comida, procuro variar, uma vez o arroz, uma outra a sopa, ora o assado, ora cozido, etc. Jamais dissestes: "Está bom! Parabéns!" Dizei por favor uma palavra, não sou de pedra! Não se pode trabalhar sem um reconhecimento, um encorajamento, só para o rei da Prússia!"
Pode ser um vintém também a caridade privatizada ou social. Está em acção uma greve justa: pode dar-se que isto traga dificuldades para mim, que não sou directamente interessado pelo que acontece. Aceitar o incómodo, não murmurar, sentir-se solidário com os irmãos, que lutam pela defesa de seus direitos, é também caridade cristã. Pouco notada, mas nem por isso menos importante.
Uma alegria misturada ao amor cristão. Aparece já no canto dos Anjos em Belém. Faz parte da essência do Evangelho, que é "novidade alegre". É característica dos grandes santos: "Um Santo triste, dizia Santa Teresa de Jesus, é um triste santo". "Aqui, entre nós, dizia São Domingos Sávio, nos fazemos santos com a alegria". A alegria pode transformar-se em caridade refinada, como Vós fazíeis nas recreações do Carmelo, aos outros. O irlandês da lenda que, morto imprevistamente, chegou ao tribunal divino, estava não pouco preocupado: o balanço da sua vida era-lhe muito magro. Havia uma fila diante dele e ele via e ouvia. Depois de ter consultado o grande registo, Cristo disse ao primeiro da fila: 'Vejo que eu tinha fome e tu me destes de comer. Bravo! Entra no Paraíso!" Ao segundo: "Tinha sede e tu me destes de beber". E a um terceiro: "Estava na prisão e me visitastes". E assim por diante. Por cada um que era convidado para entrar no Paraíso o irlandês fazia um exame e sempre encontrava algo que temer: ele não tinha dado de comer, nem de beber, não tinha visitado encarcerados nem doentes. Quando chega a sua vez, tremia, olhando o Cristo, que estava examinando o registo. Mas eis que Cristo levanta os olhos e lhe diz: "Não tem muita coisa escrita. Porém alguma coisa você fez: eu estava triste, amuado, cabisbaixo e você me contou algumas piadas, me fez rir e me deu coragem. Paraíso!"
É uma lenda, mas sublinha que nenhuma forma de caridade deve ser desprezada ou desvalorizada. Teresa, o amor que levastes a Deus (e ao próximo por amor de Deus) foi verdadeiramente digno de Deus. Assim deve ser o nosso amor: chama que se alimenta de tudo o que em nós é grande e belo; renúncia a tudo o que em nós é rebeldia; vitória que nos prende sobre as asas e nos leva em presente aos pés de Deus.
+ Albino Luciani, Card.
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