O Evangelho é para gente valente. Vejamos um exemplo: no pedacinho de Evangelho que ouvimos na missa deste Domingo o Senhor fala-nos mais uma vez contundentemente. E fala nada mais nada menos da responsabilidade dos cristãos perante o mundo e para com os demais.
— «Vós sois o sal da terra! Vós sois a luz do mundo!»
Dito assim para cada um de nós é um desassosego. Como é possível ingorar esta interpelação pessoal durante mais tempo? Como podemos os discípulos de Jesus fazer ouvidos moucos a estas palavras tão cruas e directas que Jesus nos dirige?
A mim pesa-me a religião do negro e do fatalismo, das promessas que procuram comprar a Deus, dos cedros dos cemitérios e do ritual porque sim.
Se a religião é uma relação com Deus, custa-me sinceramente enquadrá-la pelo fio escuro dos pavios e o medo, a superstição e a duplicidade, a morte e a noite da desesperança, o azedume do preconceito, a obrigação e o legalismo do ritual.
Se a religião é relação com Deus, e é, então quero vivê-la ao nível do júbilo e da alegria, da dança, da confiança e da felicidade oferecida por Jesus no discurso das Bem-aventuranças.
Ser discípulo de Jesus não é coisa de negrura, mas de franca abertura à felicidade que Ele quer verter em nossos corações. Não foi Ele que disse que somos felizes porque não escolhemos moer e remoer a dor, o negro, o vazio e a suficiência, mas abrir as mãos, sorrir, ungir e partilhar?
Para sermos cristãos bem-aventurados — isto é, santos — não precisamos mais que ser felizes.
E como é bem luminosa uma pessoa feliz!
Salgar e iluminar são tarefas cristãs. Melhor, mais que tarefas são responsabilidades. Um cristão não existe porque sim, existe para salgar e iluminar o caldo do seu contexto.
Embora não seja muito da nossa experiência mais comum, é facilmente entendível que as represas que só se alimentam da chuva de Inverno rapidamente secam, mas as que são alimentadas por um rio, ainda que o Verão seja vigoroso, resistem mais às solicitações a que são sujeitas.
O salgar e o iluminar cristãos precisam dum rio que os alimente. E o rio diz-nos hoje no Evangelho: «Vós sois o sal da terra.» «Vós sois a luz do mundo.»
Só Cristo pode salgar e iluminar.
É por isso que é tão difícil ser-se cristão, porque supõe a exigência da responsabilidade de não pensar só em si, mas também nos demais: ser sal para a terra e luz para o mundo. Para os outros. O que Jesus nos pede é quase impossível, não fora Ele alimentar-nos o armazém do sal e a carga da luz. E não deve bastar-nos ser o sal que queremos. Temos de ser sal que não decaia nem se corrompa. Dizem que quimicamente é impossível que o sal perca o sabor, mas é bem possível que não permanecendo unidos a Ele a nossa vida perca qualidade e sabor e já não atraia nem apaixone alguém.
O sal quer-se na salgadeira onde conserva os alimentos e na cozinha onde os tempera.
Onde havemos, pois, de estar, nós cristãos, senão nos lugares onde existe fastio e cansaço e o mais fácil é desistir ou mudar para pior? Onde senão nos lugares em que a sociedade cozinha soluções?
Justifica-se uma vida cómoda e sem canseiras, quando poderíamos diluir-nos nas associações cívicas e culturais, nas direcções das escolas e dos partidos políticos, no desporto e no lazer? Diluir-nos, sim, e discretamente, jamais fazendo pilha de sal que estraga tanto a convivialidade como a corresponsabilidade nas decisões. Sim, precisa-se de sal que elimina a maledicência e a corrupção, as ameaças e a opressão.
Aquele que se revelou como Luz pede-nos que sejamos luz; luz que transmita a Luz, porque só podemos ser luz se a bebermos nEle, na sua vida e na sua graça. O resto são sombras!
Vivemos um paradoxo. Nunca houve tanta luz no mundo! Nunca as noites tanto se assemelharam ao dia! Nunca os nossos rostos e vidas estiveram tão continuamente expostos à luz (da televisão, do computador e do telémovel)! Mas o mundo que mais luz tem continua a produzir teias de sombra sobre o sentido da vida e do futuro.
Nós não falamos como um qualquer partido, que, afinal de contas, pode, como nós, exigir que os seus sejam sal e luz. Nós não fazemos o combate do poder, mas o trato das mãos abertas e disponíveis, da simplicidade do coração, do sorriso liso sem esperar que nos retribuam.
Enfim, hoje o profeta Isaías ensina-nos como é ser luz. Nós o somos quando partimos o pão com o faminto, quando hospedamos pobres sem tecto, quando vestimos os nus, quando não nos fechamos nas nossas próprias vidas.
Só quem tem vida escura tem mãos fechadas!
O profeta já o disse: os que hão-de ser luz sê-lo-ão se no seu coração acenderem a fogueira da caridade.
Já compraste os fósforos?
Chama do Carmo I NS 96 I Fevereiro 6, 2010
1 comentário:
Mais do que comentar o artigo, queria agradecer profundamente as suas palavras. Há muito tempo não saía de uma celebração com a alma tão cheia e com uma paz tão grande. Vivo um momento particularmente crítico a nível profissional e as repercussões sentem-se já a nível familiar. Mas as suas homílias deram-me um estímulo para continuar. A 1ª vez que o ouvi foi no Domingo dia 30 e ontem dia 6 de Fevereiro. Nunca tinha ido aquela igreja e nunca o tinha visto. E também não me conhece mas parece que alguém lhe susurrou as palavras que eu precisava ouvir. Muito obrigado. Quem sabe Domingo ganho coragem e vou apresentar-me, a mim e à família que me acompanha! Obrigado
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