Eu li a prece que deixaram aos pés da imagem de S. João da Cruz que, desde o início do Advento, está à boca do nosso presbitério. Esta prece secreta bem merece que falemos mais de nosso pai São João da Cruz. Dizia ela assim: «Bem-aventurado S. João da Cruz: Hoje me prostro a teus pés, porque mais do que nunca preciso de ti. Eu sei que conheces a minha amiga A. e tenho a certeza que sabes que muito em breve ela vai partir para o jardim de Deus, que é o Céu, e é com imensa saudade e um carinho sem fim que te rogo que te intercedas pela A. junto do Senhor da vida e do tempo. Quero dizer-te que se a saudade e a tristeza da separação me entristecem, dá-me uma alegria sem fim a certeza de que um dia junto de Deus vamos voltar a encontrar-nos na Ressurreição!
Imploro-te que rogues a Deus pela A.
Um beijo carinhoso.
Sou quem Tu sabes bem.
São João da Cruz (1542-1591), fundador dos Carmelitas Descalços, é uma das mais importantes figuras do Catolicismo. Foi homem de oração e guia na fé de eleição, místico refinado e poeta calejado num cativeiro de nove meses, no Carmo de Toledo.
Juan de Yepes, de baptismo, nasceu em Fontiveros, próximo de Ávila, Espanha, numa família pobre. Depois da morte do pai, um comerciante nobre deserdado, a família foi para Medina del Campo, em 1551. Juan tenta, sucessivamente, aprender ofícios num orfanato e trabalha num hospital de doenças infecciosas. Entre 1559 e 1563 estudou humanidades num colégio para órfãos dos Jesuítas.
No ano seguinte entrou, para surpresa de todos, no convento de Medina del Campo dos Carmelitas. Adoptou o nome de Frei Juan de San Matias, e depois do noviciado foi estudar para Salamanca, sendo ordenado três anos depois. É nessa ocasião, aos 25 anos, que se encontrou pela primeira vez com a Madre Teresa de Jesus. Tinha ela já mais de 50 anos. Juan confessa-lhe a sua insatisfação com o que vivia no Carmo. O seu objectivo era, então, entrar num convento de monges cartuxos.
Aquele providencial encontro singular muda o rumo da vida do jovem frade. A Madre Teresa vivia já com um pequeno grupo de Carmelitas Descalças e Juan decide trabalhar com ela no sentido de renovar a vida da família carmelitana. Abandona o hábito de mitigado e, em Novembro de 1568, funda em Duruelo, os Carmelitas Descalços, assinando pela primeira vez como Frei João da Cruz.
Os obstáculos, as acusações e os conflitos de que foi vítima sucederam-se. O clima adensa-se. Os Carmelitas mitigados e os descalços são então peões de brega da política expansionista de Filipe II. Nove anos depois, a 2 de Dezembro de 1577, Frei João foi preso em Ávila, por homens e frades armados que o levaram, às escondidas, para o convento do Carmo de Toledo.
Ali, o Carmelita é colocado num buraco com cerca de três metros de comprimento por dois de largura. Apenas sai para lhe darem uma refeição de pão e água e alguma sardinha, servida de joelhos, no chão. Come no meio de muitos irmãos – palavra desadequada, como se vê – que, a cada sexta-feira, lhe aplicam duramente a disciplina (instrumento de correias que servia para a autoflagelação).
Deste degredo, do qual quase ninguém sabe o paradeiro -e os seus amigos nenhum sabe! – , Frei João fugiu a 15 de Agosto de 1578. Contará mais tarde que foi Nossa Senhora que a isso o incitou. E, para o fazer, teve a ajuda do novo carcereiro, o jovem Irmão João de Santa Maria, seu admirador, que nos últimos três meses, o vinha também fornecendo de papel, pena e tinta.
Na fuga, Frei João da Cruz leva consigo um caderninho. Nele escrevera os seus poemas – entre os quais o Cântico Espiritual, a Chama de Amor Viva e Noite Escura. E, mesmo se sua poesia não ocupa mais de 40 páginas, o poeta e tradutor José Bento não tem dúvida em colocar aqueles três poemas entre os "mais belos poemas da língua espanhola e porventura de qualquer língua".
A prosa e a poesia de São João da Cruz inclui ainda mais de 20 cartas e oito textos (disponíveis nas Obras Completas, Ed. Carmelo), três dos quais são comentários aos três poemas referidos.
Frei João da Cruz morreu no dia 14 de Dezembro de 1591, aos 49 anos, depois de fundar vários conventos do Carmo. Em Outras coplas a lo Divino, escreve: «A mais forte conquista/ na escuridão se fazia.»
Talvez por isso, volvidos tantos anos e habitando tempos duros de incerteza, São João da Cruz continue a ter discípulos e discípulas que o estimam e nele se releem como num Evangelho, ou a ele se confiam com a serenidade de quem confia na benção dum pai.
Chama do Carmo I NS 127 I Dezembro 10, 2011
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