A Páscoa não tem história. Nada, porém, mudou tanto a história como a passagem de Jesus da morte à vida. Digo que a Páscoa não tem história porque não é comprovável, já que ninguém a ela assistiu. Sabemos que Jesus foi sepultado ao cair da tarde de Sexta-feira. No dia seguinte judeu algum podia dar mais que vinte passos; e a noite de sábado para domingo foi para dormir. Mas se todos respeitaram o Sábado, já a noite foi mal dormida para as mulheres. E de madrugada, sem muito pensar (afinal as três juntas jamais removeriam a pedra do túmulo!) eis que elas estavam à porta do Sepulcro para concluir os ritos funerários. Mas o Corpo de Jesus já não restava no Reino dos Mortos. Ele estava vivo, e chamou-a: — Maria! Ela, reconhecendo a voz, respondeu: — Rabunni, Mestre!
A vida das sociedades e das religiões tem os seus rit(m)os. Que tantas vezes são véus. As regras legais, tradicionais e religiosas impediram que se fosse mais cedo ao túmulo. Por isso, não sabemos quando se deu a ressurreição. A noite, a cósmica e a da descrença, foi um segundo véu que os/nos impediu de saber como foi, ou como se processou a notícia mais notícia da história da Humanidade.
Naqueles dias a vida vencera a morte, mas quem mais mandava era ainda o medo!
1. Cathy Antunes, mãe e esposa, de Vagos, correu nesta Páscoa as ruas da paróquia, qual nova Maria Madalena. Acompanharam-lhe o passo e o anúncio da Ressurreição o marido e os dois filhos. Primeiro houve catequese em casa, depois saíram em família para a rua. Já tinham vivido a Páscoa como tantos, desta vez foram juntos anunciar o kerygma cristão. Foi belo anunciar, mas o que viram foi duro: Cathy foi quem ergueu e levou a cruz pascal, era ela quem primeiro entrava nas casas: No que diz respeito ao contacto com as outras pessoas, ela confessa ter-se «sentido chocada com o ambiente de solidão que encontrou em muitas casas». Em diversos casos, deparou-se com «uma, duas pessoas, ou então com famílias muito isoladas da comunidade».
Cathy não teve medo. Nem ela nem a família. Outras teriam evitado ou fugido.
2. Os próximos cinco domingos vão ser muito luminosos em Évora. O Papa Francisco pede que a Igreja venha para a rua, e Évora comungará com mais dez mil praças que mundo fora serão lugar de oração e canção e testemunho. Vão ali ler-se salmos e ouvir-se testemunhos de gente simples que dirá por que foram conduzidos à fé na ressurreição.
Os convites já estão distribuídos à população, falta agora que as pessoas se deixem tocar por Cristo e revalorizem o Dia do Senhor.
Não há como ter medo! Por que havemos nós de amedrontar-nos e esgueirar-nos e fugir da luz da ressurreição! Só quem não é da luz evita andar ao luar.
3. Aqui e além, em Vagos ou em Évora, mais próximo ou mais afastado de nós, haverá sempre quem tenha medo de molhar os dedos na água benta e de beijar o Crucifixo. E sempre haverá destemidos e arrojados que erguerão as suas convicções tão alto quão alto se ergueu no alto de uma colina a cruz de Cristo.
A verdade é que o medo tem as suas técnicas e patranhas, e sempre haverá quem tenha dificuldade em enfrentá-lo. Direi mesmo mais: quem ainda não se assustou ou hesitou?
4. Vejamos melhor: Neste segundo domingo de Páscoa conta-se-nos que o medo é presença seminal na Igreja. Ainda a Igreja não era Igreja, mas um grupo amorfo, e logo, covarde e medrosamente se dispersou abandonando o Mestre. Pareciam fortalhaços e eram: de espada na mão lograram cortar a orelha a um criado! Se fora a um general ou princípe, mas não, foi a um criado! Prenderam-lhes a razão das suas vidas e a luz dos seus olhos, mas como já nada esperavam nem nada viam, deixaram-nO ir e morrer debaixo das torturas e piadolas dos inimigos. Eles, os primeiros, a Primeira Igreja, refugiaram-se pelos recantos do medo no Cenáculo. Depois deles muitos outros tiveram muito medo. E tantos, ao invés, alguns deles meninos, revelaram-se valorosos como heróis lendários! Que a Igreja apresenta sempre duas faces, a luminosa e a sombria.
O Evangelho deste domingo revela ainda que Jesus deu a paz duas vezes aos discípulos medrosos. Deu e confirmou. Duas vezes!
A construção do medo é tão poderosa que não é fácil desmontá-la. De facto a gesta da fé não é fácil. É um processo demorado e ninguém se deve admirar que existam recuos. É ou não verdade que há já muito que o Sepulcro está vazio, e há muito o Dia da Ressurreição muito se alonga e muitos ainda não acreditam? Uns viram, e não acreditam! Outros lembram-se da promessa — «Voltarei!» — e não acreditam! E os que agora vêem o Ressuscitado tardam em recuperar da surpresa e aderir à novidade! Perpassa em tudo a narrativa do medo: afinal, quem estava preparado para a ressurreição?
Só o encontro nos traz a luz do Ressuscitado e nos esparge o medo. E é de facto ali, no recanto do medo, o Cenáculo, que brota o fermento da nossa alegria e da nossa fé. É então que se prova que o medo só tem valor enquanto não nos toca a ternura do Seu olhar!
Chama do Carmo I NS 183 I Abril 7 2013
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