sábado, 17 de maio de 2014

Não se perturbe o vosso coração!

Herança. A narrativa evangélica que lemos neste domingo é retirada mais uma vez do evangelista João. Tomando-a nas mãos e lendo-a apercebemo-nos que é um texto denso, densíssimo, como só poderia ser um texto de testamento. Era tradição entre os judeus que chegada a hora de abandonar este mundo, o pai, numa última refeição, reunisse os da sua casa e lhes legasse o seu património, quer material quer espiritual.
Eis, portanto, hoje, o legado que Jesus nos deixou na Última Ceia. O evangelho que lemos neste domingo é parte das palavras testamentais de Jesus. São palavras profundas pelas quais Jesus se nos entrega confiadamente e se nos dá a conhecer intimamente, se nos propõe como caminho que leva para Deus e se nos apresenta como Deus, como caminho, verdade e vida. Antes de morrer, para todos e em partes iguais, Jesus legou-nos a sua paz desejando a todos um coração pacificado. Mas é uma tarefa inacabada e a realizar todos os dias.
Dificilmente poderíamos imaginar uma palavra melhor e mais forte para os dias do tempo pascal. Pessoalmente gosto de cotejar ano a ano o aturdimento dos discípulos aferrolhados pelo medo do futuro. Mas se gosto dessa cena negra é por que o Ressuscitado há-de entrar para dentro do seu negrume e conferir-lhe a claridade da paz que só Ele pode dar e espairecer-lhes as almas!
«A paz esteja convosco!» e «Não se perturbe o vosso coração» soam-me a igual. E dizem-me que a Páscoa não foi parte que apenas tocou a Jesus, por que ela envolve também a humanidade inteira posta diante da ressurreição de Jesus a fim de passar do medo para o júbilo e para o êxtase.
A Páscoa toca-nos as fibras mais secretas e mais íntimas do coração, lava-as e pacifica-as, abre-lhe os gonzos do medo e deixa penetrar a Luz que vence. Hoje como ontem não creio que saibamos dizer Páscoa, isto é, toda a pura densidade do mistério acontecido na vitória de Jesus. Podemos dizer muitas palavras e elaborar teorias, mas faltar-nos-á o reconhecimento e aceitação do desassossego do coração impotente e amarfanhado pelos laços da morte, que há-de, depois, sobressaltar-se com o inesperado da derrota dos inimigos.
Nós não merecemos tal vitória nem sabemos agradecê-la. E sim, a vitória sobre o medo e sobre a morte é nossa, porque Jesus a alcançou para nós. E a beleza da Páscoa é a vitória de Jesus e o coração pacificado dos seus discípulos. (Oh, se soubéssemos cantar os louvores da vitória e da pacificação não poderíamos jamais parar de cantar tão belos hinos!)
«Não se perturbe o vosso coração!».
O Evangelho deste domingo abre com estas palavras admiráveis de Jesus. É uma saudação que nos aplaca o coração que se agita diante do turbilhão das inseguranças e dos temores que, tantas vezes, nos induzem gestos e atitudes próprios de discípulos desesperançados e antecipadamente derrotados antes de ir a jogo.
«Não se perturbe o vosso coração!»,
é a mensagem de Jesus aos discípulos que até talvez se encontrem cobardemente confortáveis no fundo do poço, vivendo sem luz e sem vida, sem rumo e sem esperança de saída para as suas vidas. Vivem mortos, mas confortáveis!
«Não se perturbe o vosso coração!», diz-nos hoje Jesus a cada um de nós. Quando tudo parece falho de sentido Jesus, o Vencedor, tem antecipadamente palavras de conforto e de segurança. Ele sabe bem que um coração perturbado não enxerga nada senão escuros medos; não enxerga o amor dos outros, a compreensão dos demais , a disponibilidade para nos emprestarem a mão, o braço ou os pés por mais um troço do caminho; não enxerga que o mundo – este pequeno berlinde suspenso na leveza do azul do universo – continua trilhando o seu caminho com a calma de sempre.
(Afinal, talvez nos levemos demasiado a sério; e talvez tenhamos desaprendido a harmonia do saber perder tempo e deixar livremente os rios correrem para o mar.)
O coração perturbado cai facilmente na sedução do medo e fecha-se em si mesmo, mirrando-se e morrendo aos poucos. Irreversivelmente, sem se dar conta, e, por fim, sem possibilidade de inversão de marcha.
Mas, atenção, estas palavras – «Não se perturbe o vosso coração!» – disse-as Jesus pouco antes da sua Paixão. Também por mais essa circunstância nós devemos considerar que Jesus sabia o que nos estava a dizer. Sabia que a agitação do coração e a perturbação das emoções não ajudam a contemplar os milagres da vida e tampouco a olhar para dentro de nós mesmos. Por isso, aos discípulos agitados não lhes pede que fiquem impassíveis ou que se afastem dos problemas do dia a dia, e também não pode sugerir-lhes que mergulhem numa vida regalada que favoreça o intimismo e os desligue do mundo.
Aos discípulos perturbados e sem capacidade de decidir, Jesus, prestes a morrer, oferece uma última refeição e dá em testamento o melhor do seu património: oferece-Se-nos oferecendo pão e vinho como sinais do seu Corpo repartido, e a paz!
Tal como um pai oferece aos filhos o melhor de si para continuar vivendo nos herdeiros, assim Jesus nos oferece a paz para que saibamos viver ao seu estilo!
A Igreja pequenina e frágil guarda para sempre a confiança de Jesus em nós e caminha pela história entregando de geração em geração a paz!

Chama do Carmo I NS 229 I Maio 18 2014

Sem comentários: