sexta-feira, 2 de março de 2012

Uma Quaresma menos

Não estou a chegar ao fim da vida, embora essa certeza só Deus a saiba. Entrei por isso na Quaresma convencido de que é preciso apreciá-la para agradecê-la, aceitá-la para mudar algo. Ainda posso mudar algo na minha vida, que, creio, não tem o seu fim histórico para já.
Mas que já está marcado, já.
Eu creio que o Pai tem um caminho para todos e para mim também. A meu ver o do Filho Pródigo é demasiado curto, e o do Filho Mais Velho é ainda mais curto e ambos estão longe do coração do Pai. Porém, nada garante que os regressos sejam efectivos e sinceros, e não apenas em busca duma côdea de pão. Afinal, podemos dispensar quase tudo, mas o pão não.
Queira Deus que eu não coma por comer, que para isso está a Quaresma para mo lembrar.
Não sou velho, e as contas estão certas: esta já é uma Quaresma a menos. E como padre é já a décima nona!
Cada ano o caminho é sempre o mesmo: quarenta dias a subir até ao Calvário. Creio que tive sorte com o cireneu, porque é Ele quem me leva a cruz. E por mim continuará mais um tempo (sem mim)! Que de mim dou pouco.
Cada ano o caminho deveria ser diferente: Uma nova mudança, um acerto no rumo, um ajuste na velocidade, uma correcção de sentido, um novo programa de conversão. Enfim, parece mais uma repetição, mas não é de todo. O monte continua lá, a cruz continua lá, Cristo continua lá e por lá terei de passar a caminho da ressurreição. Cristo é o mesmo e o caminho também. Eu sou o mesmo, mas este ano carrego mais pó dos caminhos e dos pecados.
A minha sorte é que Cristo entra primeiro que eu em Quaresma, e ali está Ele para me dar a mão, me emprestar o ombro, me oferecer o coração rasgado onde me poderei acoitar. Felizmente há Quaresma. Basta para tanto que a roda do tempo rode com acerto e boa cara para nós. Mas, que fizemos nós de tantas Quaresmas? Para onde vamos nós, os papa-Quaresmas? Por que não marcam os jejuns as nossas carnes? Por que as conversões não nos marcam o coração? Poderei chegar igual à próxima Quaresma?
Esta é uma Quaresma a menos, uma oportunidade a menos. Alguns amedrontam-se e até se aterrorizam. Por que confio que ainda terei mais uns anitos, por aqui vou andando ignorante do fim, do dia e da hora. Porém, já olho para trás e vejo que faltam amigos a meu lado. Já olho para trás e recordo que alguns terminaram inesperadamente. (A meio de uma Quaresma, a um amparei-lhe a cabeça no meu peito, no banco de trás de um carro voando nas curvas em direcção ao hospital. Não valeu de nada... Era mesmo a sua hora! Foi mesmo a sua última Quaresma!) Olho para trás e já não estão alguns que caminharam comigo a Quaresma passada. Agora que o seu caminho terminou, quero crer na misericórdia do Pai e que estão a celebrar eternamente a Páscoa.
Qual será a minha última Quaresma? Não sei. Só sei que no fim desta ficarei mais próximo da casa do Pai. Mais próximo dos átrios da sua casa. Queira Deus que chegue lá com a veste limpa, eu que em vida usei um hábito!
Neste Domingo da Transfiguração vou para retiro. Para um monte. Verei se me aproximo do Senhor e Ele me lava. Que se o Senhor não me lava nem me leva, isto não vai de todo bem e até mal!
Vou ao encontro do Senhor convencido de que é este o tempo da graça e que a graça não pode ser desaproveitada, que amanhã haverá uma oportunidade menos para me encontrar com Ele e a Ele me abraçar.
De que valem todas as Quaresmas passadas e o fruto de conversão que deram (se deram?) se nesta eu não me converter e melhorar?
Vou converter-me, porque não sei se nas futuras darei algum fruto. A altura certa é esta. O lugar certo é aqui, com estes que me rodeiam, com os pés que comigo cruzam as encruzilhadas. O Caminho vai connosco, não há que enganar: O seu términus é mesmo a Casa do Pai.
Chegou a hora. É esta a hora certa para abrir o coração e lançar a semente. Chegou a hora da caridade e o momento de negociar os talentos, de arriscar os dons e arrancar frutos doces do meu coração de pedra! Procurarei descortinar a vontade de Deus, que me diz pela boca do Profeta Isaías (58:6-7):



«O jejum que eu quero é este: Abrir as prisões injustas, fazer saltar os ferrolhos dos cepos, libertar os oprimidos, romper todas as correntes, partir o pão com o faminto, hospedar os pobres sem tecto, vestir o nu e não me fechar na minha própria carne.»

Não é tão pouco assim, mas também não poderei adiar o que é para agora. Como posso fechar o rosto a tanta vítima da crise? A tanto necessitado? Poderei deixar para o ano aquilo que já me foi dado neste? Vou para Quaresma.
E entretanto se eu não morrer, poderá morrer de fome o pobre que agora me pede ajuda!
Chama do Carmo | NS 139 | Março 4 2012

Sem comentários: