É por isso imprescindível que o lema seja visto no seu contexto original, o de Mc 19, 35-45. Aproximaram-se dele Tiago e João, os filhos de Zebedeu, e disseram-lhe: «Mestre, queremos que nos faças o que te pedimos.» Ele disse-lhes: «Que quereis que vos faça?» Eles disseram: «Concede-nos que nos sentemos um à tua direita e outro à tua esquerda na tua glória.» Mas Jesus disse-lhes: «Não sabeis o que pedis. Podeis beber o cálice que Eu vou beber ser baptizados com o baptismo com que Eu sou baptizado?» Eles disseram: «Podemos.» Jesus disse-lhes: «Bebereis o cálice que eu bebo e sereis baptizados com o baptismo com que Eu sou baptizado; mas sentar-se à minha direita ou à minha esquerda não pertence a mim concedê-lo; é para aqueles para os quais está preparado».
Tendo ouvido isto, os outros dez começaram a indignar-se contra Tiago e João. Depois de os chamar, diz-lhes Jesus: «Sabeis como aqueles que se julgam chefes das nações dominam sobre elas e como os grandes têm poder sobre elas. Mas entre vós não é assim: quem quiser tornar-se grande entre vós, será vosso servo, e quem entre vós quiser ser o primeiro, será escravo de todos. Porque também o Filho do Homem não veio para ser servido, mas para servir e dar a sua vida em resgate por todos.»
2. Servo é a tradução do grego “diákonos”, de que provém diácono, um termo porém, na origem, com um uso muito mais alargado do que tem hoje entre nós. Genericamente, diácono era aquele que fazia de mediador entre duas ou mais pessoas: a que o chama e envia e aquela (s) a quem é enviado. Uma missão só realizável mediante uma total sujeição: em primeiro lugar e acima de tudo à pessoa que envia, de tal modo que ela se torna presente e actuante no seu enviado; sujeição, por isso mesmo, também àquilo que tem de transmitir, para que chegue sem perdas nem deturpações ao seu destino; sujeição finalmente aos destinatários da diaconia, sobretudo se o que recebem é para seu bem.
Com escravo (“doulos” em grego) apenas se explica e acentua a total dependência já inerente à condição de diácono. Para Jesus, a condição identificativa da comunidade dos seus discípulos. Deles exige uma total sujeição, que é tanto maior quanto mais elevada for a autoridade que exercem; uma sujeição não apenas aos restantes discípulos, mas sem limites de destinatários. Porquê?
3. Como mostra o final da passagem bíblica, o próprio Jesus define a sua condição e missão messiânica em termos de diaconia. E também ela na tríplice relação de total dependência, no seu caso associada já ao título de Filho do Homem.
Na origem e acepção mais comum, Filho do Homem era um simples ser humano. Mas, a partir da visão de Dan 7,13, passou também a significar na tradição bíblica aquele que vem com as nuvens do Céu, isto é, de Deus (Mc 14,62). Alguém, portanto, de origem e condição ao mesmo tempo divina e humana: Aquele em quem Deus mais se une aos homens, para, mais, do que ninguém, unir os homens a Deus.
Uma missão que Jesus realizou enquanto não veio para ser servido, mas para servir. A Deus e aos homens. A Deus a quem, qual Filho muito amado, tratava por Abba, um termo expressivo da máxima intimidade e dependência, no fundo a mesma do diácono. Aos homens, na medida em que, sendo de condição divina, se esvaziou si mesmo, tomando a condição de escravo (Fil 2,6-7); a condição em que foi provado em tudo como nós, excepto no pecado (Heb 4,15), para dele nos libertar: de um modo decisivo pela morte na cruz.
Foi então que Ele, em completa obediência ao Pai, lhe entregou o seu Espírito, a fonte da sua vida (Lc 23, 46; Jo 19,30). Não porém, sem antes lhe pedir perdão para os que o matavam (Lc 23,34). E neles para toda a humanidade. Foi em resgate por todos que Ele deu a vida. Porque a deu como justo pelos injustos (1 Ped 3, 18). Transformando assim a maior injustiça no acto da maior justiça, da máxima união a Deus e aos homens. Para os conduzir para Deus, num amor sem medidas, aquele de que só Deus é capaz.
E por isso Deus o exaltou e lhe deu o nome está acima de todo o nome: o de Senhor (Fil 2,9.11) . Isto é, foi na morte que Jesus também mais encarnou o objecto da sua missão: o Evangelho do Reino. Ao vencer a morte e tudo o que a ela conduz, tornou-se definitivamente para integrante do Reino de Deus. E, como tal, conteúdo do Evangelho. Mas sem deixar a condição de servo e escravo. Mostrando as mãos e o lado de Crucificado é que Ele, o Ressuscitado, apareceu aos seus, lhes transmitiu a paz, a que nasce do perdão, e os constituiu enviados seus, mensageiros do perdão para sempre obtido na cruz (Jo 20, 19-23).
4. Foi dele que assim nasceu e assim vive a sua Igreja: pela fé de cada um. A fé que é obediência, isto é, entrega livre e total a quem se entregou todo por nós; a fé pela qual Ele toma posse de mim e me transforma, de tal modo que já não sou que vivo, mas é Cristo que vive em mim (Gal 2,20); a fé que, nascendo do amor, actua pelo amor (Gal 5,6), o seu amor em mim e de mim aos outros, a todos os outros.
Neste contexto é perfeitamente compreensível o que Jesus exige dos seus pais: serem diáconos uns dos outros e escravos de todos. Ou Paulo com a exortação: «Fazei-vos escravos uns dos outros» (Gal 5,13). Escravos porém, sem qualquer perda de liberdade e de prosperidade. Pelo contrário: Foi para a liberdade que Cristo nos libertou (Gal 5,1), a liberdade dos que amam à dimensão do seu amor. E a esses podem aplicar-se estas outras palavras de Paulo: Tudo é vosso: Paulo, Apolo, Cefas, o mundo, a via, a morte, o presente, ou o futuro. Tudo é vosso. Mas vós sois de Cristo e Cristo é de Deus. (1 Cor 3,21-23).
5. É pois nesta condição que a Igreja adquire a sua identidade e realiza a sua missão. E isto em todas as áreas da sua vida, como aliás nos vão mostrar as leituras bíblicas da presente celebração:
A de Act 6,1-7 fala-nos da evangelização, da Palavra que crescia em latitude. Um sucesso que se devia tanto à pregação dos Apóstolos como à caridade dos que tinham sido investidos na tarefa de socorrer as viúvas. Não é por acaso que, no original grego, às duas actividades se chama diaconia. É que ambas resultam da mesma entrega total ao Evangelho: uma entrega provocada pelo próprio conteúdo do Evangelho, isto é, a oferta da vida feita por Cristo, para a salvação de todos; e uma entrega, por isso, em que o Evangelho é encarnado nas vidas daqueles que a ele se entregam: na total dedicação ao seu anúncio por parte dos Apóstolos e na generosa dedicação aos mais desfavorecidos da parte dos que servem às mesas. Daí e força convincente e salvífica da evangelização, ainda hoje.
Na 1 Ped 2,4-9 são realçados a origem e os efeitos da união entre os cristãos, as pedras vivas do templo do Senhor. É espiritual o edifício que formam, porque animado pelo Espírito que deles se apodera e leva cada um a entregar-se ao serviço dos outros, a dar de graça o que de graça recebe. Daí a forte coesão de diferenças entre eles. Uma unidade que exige sacrifícios. Uns do interior da Igreja, outros provenientes de fora: entre os cristãos, a renúncia ao que partilham; de fora, a marginalização da parte de não crentes, devida ao abandono pelos cristãos de práticas contrárias à sua fé. Mas são exactamente esses os sacrifícios que agradam a Deus, porque feitos em total adesão á fé a Cristo. A fé pela qual Ele passa a actuar naqueles que a ele se confiam – como pedra tomada viva e vivificante pela total entrega a Deus e aos homens, incluindo aqueles que o rejeitam.
Por isso é que os sofrimentos a que tantas vezes somos sujeitos por fidelidade às convicções e práticas cristãs acabam por nos fortalecer na fé, na esperança e no amor, e nos levam a participar mais vivamente do sacerdócio de Cristo: como testemunhas da sua salvação, que se revela ao vivo em nós… se a Ele nos mantivermos unidos.
É dessa união que Ele nos fala em Jo 14,1-12. Mas agora mais na perspectiva da celebração da fé. As suas palavras são ditas na Última Ceia, que tem a sua memória na Eucaristia. É nela que, ainda neste mundo, se entra com mais intensidade na morada que o Ressuscitado nos preparou com o seu regresso à casa do Pai.
Um regresso que Ele realizou como escravo. A lavagem dos pés era obrigatória só para escravos e a crucificação era uma pena reservada a escravos ou pessoas degradadas a essa condição. Um acto de escravo sem dúvida, mas de modo algum escravizante. Pelo contrário: foi o acto mais livre e libertador, porque expressão de amor, o que atinge o grau máximo no dom da vida por aqueles que se ama.
Foi assim que Ele se tornou presente entre nós como o caminho, a verdade e a vida: o caminho que nos conduz à mesma entrega da vida; a verdade do Pai que no Filho nos liberta e capacita para o mesmo amor; a vida em que, nesse amor, triunfamos definitivamente sobre o pecado e a morte. Razões de sobejo para a Ele nos confiarmos pela fé: para que, em nós, continue a fazer as obras do Pai – no amor que nos une, nomeadamente nesta Eucaristia.
6. A tentativa dos filhos de Zebedeu de subirem ao topo da glória e do poder, a todo o preço, até da própria vida, não foi a última na história do cristianismo. Com os custos a que o Evangelho já alude: a destruição da unidade entre os cristãos; a adopção de critérios e hábitos mundanos e a consequente perda da identidade, credibilidade e poder interventivo da igreja, e sobretudo a instrumentalização e até manipulação de Deus e do sagrado para proveito próprio, o pecado da idolatria.
Contra tais tentações e pecados, não encontro meio algum que não passe pela oração. A autêntica: a que, nascendo do reconhecimento – dos nossos limites e fragilidades de criaturas, consiste na entrega de fé ao Deus detentor da vida e Senhor da história, o Deus que, para isso, em Jesus Cristo desceu ao nosso nível, encarnou as nossas fraquezas, para fazer delas o dom da vida… e nessas condições nos conquistar para a oração, nos ensinar a rezar.
Essa a oração a que todos somos convidados nesta celebração. Aquela em que na prostração assumo a atitude do escravo que reconhece a distância que o separa do seu Senhor e a Ele se confia para acolher a sua graça e se deixar transformar pelo seu poder. A oração que, para isso, necessita do apoio e intercessão de tantos que, para serem santos, se fizeram escravos: como Pedro e Paulo, escravos de Cristo, ou Maria que, ao oferecer-se como escrava do Senhor, se tornou a Mãe do Filho do Altíssimo.
Que assim o Espírito do Senhor, pela oração ordenante e a imposição das mãos, penetre em mim… para fazer de mim escravo de todos.
+ D. Anacleto de Oliveira
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