Ao fim de quatro dias de caminho os jovens carmelitas chegam hoje ao Santuário Fátima, finalizando, assim a IV Peregrifáti ou Peregrinação a pé a Fátima do Movimento. É uma experiência única que marca quem nela se inscreve.
Realiza-se também hoje a XXVI peregrinação nacional dos devotos do Reizinho ao Santuário do Divino Menino Jesus de Praga, em Avessadas, Marco de Canaveses.
Uma e outra peregrinação — o punhadito de Fátima, a multidão de Avessadas; a pé ou de bicicleta, de carro ou autocarro —, inscrevem-se nesse movimento de alma que caracteriza o cristão: não ter em lugar algum morada permanente.
Peregrinar é um movimento que marcou todas as eras e sociedades, não apenas as religiosas. As metas sempre foram apelos tão díspares como os cumes das montanhas e os rios, os lugares sagrados tornados famosos e até os bosques e o mar.
Vistas as coisas como devem só se desloca quem tem potencial para isso, só sai de si e da segurança do lar quem, no fim de contas, nem no lar próprio nem no incansável calcorrear dos caminhos tem morada permanente.
Também é certo que nem só os ricos peregrinam, mesmo quando a ausência é onerosa e por longos meses.
Os tempos actuais, porém, proporcionam um índice de mobilidade cujo caudal é incomparavelmente maior ao de qualquer outra era. Ninguém antes de nós pôde deslocar-se como nós: mais longe, mais rápido e tão seguro. Talvez por isso e ainda por causa da sede de infinito e de absoluto, a saída e a busca engrossaram visivelmente nos nossos dias. As numerosas deslocações de indivíduos, de pequenos grupos e de multidões alcançaram proporções raramente antes esboçadas.
As motivações para peregrinar a pé são muitas. Vão desde o desejo de purificação e mortificação (sim, ainda existem, não estão erradicados!) até ao apoio voluntário que se dá a alguém mais frágil, e também a busca de perfeição espiritual, de superação pessoal e dos limites quotidianos.
Todo o peregrino sente algum aconchego na ideia de ser estrangeiro por um tempo. Existe aí algo de misterioso: ele não se deixa aprisionar a quaisquer grilhões, mesmo que jamais atinja a meta desejada. É alguém cuja fobia ao emparedamento a que a sociedade obriga, o impele para a urgência da partida, refazendo, assim, o caminho inevitável de cada ser humano: nascer, crescer, morrer.
Numa peregrinação podemos assinalar o paralelismo dessas fases bem definidas: (preparação) partida, percurso e regresso. A partida é um momento de ruptura. Em tempos mais incertos que os nossos a partida era quase sempre certa, o regresso não. Por essa, razão lavravam-se testamentos, o cônjuge (sim, as esposas por vezes também partiam!) obrigava-se a dar consentimento e o peregrino partia depois da bênção da autoridade religiosa (frequentemente o bispo!) munido duma cédula em que se reconhecia ser tal a sua condição, como forma de rejeição ao estatuto de vagabundo ou pedinte.
Abandonada a existência rotineira, a casa e os afazeres o peregrino submerge-se no tempo do percurso que dura toda a viagem até atingir a meta proposta. Caminhar para a meta é o que o move, tantas vezes brigando contra a exaustão. A fadiga e o testar do limiar da resistência física têm uma beleza própria. Experimentar os limites próprios torna a oferta dum copo de água fresca uma graça inestimável e renovadora da leitura do Evangelho.
Até mesmo a mais pequena das peregrinações
— por exemplo, a que todos os domingos fazemos da nossa casa até à igreja, onde rezamos a Missa! — nos situa ao nível dos peregrinos célebres e nos aproxima deles, e não apenas espiritualmente, também fisicamente, tal é, por vezes , o grau de exaustão, de abandono, de entrega ao caminho, de confiança em quem se compadece de nós e nos abre as portas ou o coração, a nós, estranhos. Pela peregrinação convivemos com os campeões dos caminhos Abraão, Isaac e Jacob, Moisés, Aarão e Miriam, Elias, Eliseu e Naaman, Jesus, José e Maria.
Só um coração insatisfeito com o banal e o habitual, só um olhar perscrutador dos segredos da orla do horizonte, só alguém inquieto e aberto ousa peregrinar. O centro da peregrinação é esse: a convicção da inexistência de morada permanente. Nem todos o sabem e muitos se enganam: nós não temos residência fixa, nós só temos morada eterna depois de cruzar o umbral da morte.
A peregrinação é um renascimento. Ela afasta da fadiga quotidiana e aproxima da experiência de Deus. Por isso, tanto encanta e seduz.
O regresso não é um desafio menor. No regresso tudo mudou, tudo está diferente. E apesar das convulsões que entretanto a história possa ter registado em acta, quem mais muda é o peregrino. Ao atravessar a padieira da porta e retomar o seu lugar no quotidiano o peregrino chega mais humilde, mais luminoso no olhar e mais engrandecido espiritualmente. Ou então, não foi peregrino mas simples turista.
Chama do Carmo I NS 73 I Junho 6, 2010
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