segunda-feira, 26 de outubro de 2009

Homilia do P. Geral na Festa de S. Teresa

Este ano, a celebração da festa de Santa Teresa tem para nós, Carmelitas, um significado particular. É o ano do Capítulo Geral, onde a nossa família religiosa decidiu iniciar um caminho de preparação para o quinto centenário do nascimento de Teresa. Esta preparação consistirá, principalmente, e segundo as palavras do Documento Capitular Para Vós nasci, em «ler por ano na Ordem, pessoal e comunitariamente, uma obra da Santa Madre Teresa de Jesus, desde o 15 de Outubro de 2009 até ao 2014». Portanto, a partir de hoje, nós, os Carmelitas, tanto a nível pessoal como comunitário, tomamos o compromisso de dedicar, todos os dias, algum do nosso tempo e atenção à leitura dos escritos teresianos. É um compromisso discreto, escondido, mas essencial.
Que poderemos esperar deste «exercício de leitura»? Não vamos ler Santa Teresa apenas para aumentar a nossa cultura, ou retirar dela conteúdos históricos e doutrinais para estudar e ensinar. Vamos lê-la para entrar em comunicação com ela, para nos conhecermos a nós mesmos. O meu professor de filologia românica, Gianfranco Contini, um dos leitores mais agudos que tenho conhecido, definia o bom leitor como «aquele que está disponível para se deixar invadir pelo espírito do outro, através da leitura». É precisamente isto que esperamos da leitura de Teresa: que o seu espírito invada o nosso espírito, os espíritos dos homens e das mulheres deste tempo, que comungam dos problemas, das esperanças e das angústias desta geração.
Os nossos espíritos andam inquietos, como sempre inquieto está o coração do homem peregrino na história, embora esta inquietação adquira actualmente conotações particulares como sejam os traços característicos da nossa sociedade civil, da nossa Igreja, das nossas comunidades familiares e religiosas. Encontramo-nos sedentos como a Samaritana que vai ao poço à procura de água. Mas, qual é a água que verdadeiramente nos pode saciar não só por uns momentos ou superficialmente, mas plena e definitivamente? Não será, certamente, a água que possamos tirar com as nossas forças dos poços que os nossos pais abriram. Mas, é a água que brota copiosamente da pessoa de Jesus, que nos encontra aqui e agora, aparentemente de modo casual, mas que, na realidade, já nos conhece desde sempre e lê, no nosso eu mais profundo, os escuros recantos do nosso coração.
Também Jesus tem sede, e é levado pela sede. A mulher Samaritana e o homem Jesus encontram-se à beira do poço, levados pela procura de água. Jesus, cansado da viagem, no momento de maior calor, sente a mesma sede da mulher que foi ao poço, experimenta a mesma sede dos discípulos que foram à cidade comprar alimentos. A humanidade de Jesus é exactamente a nossa humanidade com os seus achaques e fragilidades, mas também é, em tudo isto e por meio de tudo isto, a humanidade que chega à sua plenitude, «que é perfeita», como diz a Carta aos Hebreus, e por isso mesmo conduzida à sua pátria, que é o seio da relação entre as três Pessoas divinas. É a humanidade do Filho que se alimenta da vontade do Pai e que, perenemente, é saciado e renovado pela água viva do Espírito Santo. Jesus fez uma longa viagem para chegar ao poço onde encontra a Samaritana: não apenas a viagem pelos caminhos da Galileia e da Samaria, mas também a viagem que o levou desde o Pai até ao homem distante, extraviado e infiel. Mas também é maravilhoso constatar que, através do encontro com Ele, a Samaritana inicia a viagem de se encontrar consigo mesma e, portanto, de anúncio e de testemunho: Encontrei Aquele que me conhece bem por dentro, que me fez descobrir a minha verdade e dignidade de filha do Pai.
Não admira nada que Teresa se deixasse fascinar por esta passagem evangélica e se reconhecesse como sendo essa mulher sedenta. Também ela já estava cansada de caminhar – «Porque andava já a minha alma cansada», escreve em Vida 9, 1 – e tinha sede de paz e de luz: Eu entendia que O amava, mas não entendia em que consiste amar deveras a Deus, como o devia entender» (Vida 9, 9). E permanece nesta escuridão e angústia até que a graça a levante à sua actuante presença: Ele estava ali, diante dela, para lhe dizer, com todo o seu corpo chagado, que estava ali por ela e com ela, sempre e em todo o lado. A partir daquele momento Teresa começou a entender que amar deveras a Deus significa, antes de qualquer outra coisa, acolher-se deveras no seu amor. Foi o amor de Deus que venceu a morte pela ressurreição de Jesus. Teresa encontra-se com o Crucificado ressuscitado e no seu corpo vê, lê com clareza o poder deste amor, capaz de superar todas as resistências e abater todos os obstáculos. Teresa abandona-se totalmente a Ele, libertando-se de tudo o que a travava no plano pessoal, social e eclesial. O seu coração ferido é o coração do homem novo, o coração de carne (Ez 11, 19), liberto e aliviado, como no impulso ascensional para o amor, na representação de Bernini, que a atrai para si e a faz sua. Sua esposa, dir-se-á e foi dito, mas mais ainda sua amiga e sua colaboradora. Tal como a Samaritana, descrita como a amiga que fala com Jesus e a discípula que fala aos outros de Jesus, assim é Teresa. À passividade de ser perdoada, escutada e amada por Jesus, corresponde a actividade da amiga e colaboradora que já não se vai espantar mais com a sua debilidade, com as dificuldades materiais ou juízos dos homens, mesmo que sejam eclesiásticos prestigiosos. Teresa põe-se a caminho e não deixará de caminhar até à morte, que para ela é a porta para além da qual continuará a caminhar até ao encontro com Ele, já verdadeiramente Esposo contemplado face a face.
Em todas as páginas e linhas das suas Obras, Teresa convida-nos a segui-la no seu caminho ao encontro do Crucificado ressuscitado. Ela vai-nos repetindo que Jesus Cristo está vivo, com uma vida oferecida e doada a quem a quiser receber. O que é que nos impede de a seguir? O que é que nos impede de fazer a sua mesma experiência? Talvez encontremos uma resposta na passagem do Livro da Sabedoria, proclamado na primeira leitura: «Preferia-a aos ceptros e aos tronos, e, em comparação com ela, tive as riquezas como nada» (Sab 7, 8). A Sabedoria deixa-se encontrar por quem se decide por ela, por quem compromete nela a própria liberdade.
Estamos preenchidos com muitas coisas, coisas que não escolhemos livremente, mas que deixamos a nossa vida preencher-se com elas. Elas não nos alimentam, não nos saciam, não nos aquecem, e, contudo, não temos força para nos libertarmos delas. Sabemos que Teresa lutou durante muito tempo para se libertar do que possuía ou, melhor dizendo, daquilo que a possuía.
Não podemos, portanto, pensar que será mais fácil para nós do que foi para ela, ou que seja possível chegar a uma verdadeira transformação de nós mesmos sem a graça de Deus, ou invocá-lo de maneira incansável sem um compromisso sério da nossa parte. Um compromisso que devemos viver numa dupla direcção: despirmo-nos de tantos impedimentos, que nos atam e confundem, e metermos mãos à obra para realizar responsavelmente o trabalho que nos foi confiado. No fundo, o homem está feito de tal maneira que só a acção obediente à vontade de Deus o pode transformar. E digo-o sabendo perfeitamente como é importante que seja a vontade de Deus, e não a do homem, a que dirija a nossa vontade a partir de dentro.
Que Teresa nos ensine a reencontrar a nossa liberdade para nos entregarmos Àquele que, efectivamente, nos quer livres.

(Tradução do P. Vasco Nuno)

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