domingo, 11 de abril de 2010

Somos igreja de barro frágil

O papa João Paulo II chamou ao segundo Domingo de Páscoa o Domingo da Misericórdia, pelo toque que permitiu e serenou Tomé. A dinâmica que se pressente na narrativa do discípulo das dúvidas e a síntese proposta pelos Actos dos Apóstolos recordam-nos que a comunidade dos discípulos de Jesus está permanentemente em construção, renovação, purificação e santificação. É verdade, não somos puros como anjos, nem funestos como demónios. Somos homens e mulheres calcorreando o caminho da perfeição. Mas ai de nós se a Graça não nos acompanha e molda!
Somos Igreja. Santa e pecadora. Querer que seja só santa, acusá-la de ser só pecadora não condiz com o que somos e só diz que tal ou qual pretensão se desvia seriamente da realidade.
Muitos séculos depois da Ressurreição vamos nutrindo o caudal da história, cuja correnteza nos há-de levar à plenitude da comunhão com Deus e nos traz já hoje a frescura da salvação.
Somos Igreja. Não somos uma caserna, somos um redil. Somos hoje um corpo acossado qual regimento em campo aberto rodeado por um vespeiro de inimigos aparelhados de setas prestes e envenenadas.
Não creio que nos queiram eliminar; é antes uma vontade de que intimidando-nos depois nos amestrem e rasourem aos níveis térreos da exigência e do compromisso. Por essa razão, rompendo os códigos atiram aos oficiais e massacram as patentes, na certeza de que rebanho decapitado mais facilmente se dispersa ou melhor enfileira pelos trilhos da conveniência do momento.
Durante centúrias bastaram-se com descrer as ovelhas mais valentes e saciaram-se com algum dos pequenos graduados e um que outro sargento.
Já não é essa a estratégia mais conveniente.
Obviamente reagimos. Existem por isso subscrições de apoio e conforto ao Papa, em contra-resposta às intimidações — subliminares umas, outras bem directas — , de que é alvo.
A lógica intimidatória está aí. O circo está montado. Nada de novo, porém. Há anos que se assiste ao ataque às bases, é normal que agora a ferocidade dos lobos se atire à cara do pastor. Um pastor que alguns de dentro julgam difícil de seguir e ainda mais de amar, e que muitos de fora admiram pela agudeza do espírito e pela coragem posta na acção.
A provação sempre foi para nós um sal.
Sempre que entre nós alguém vacilou, caiu ou recuou, uma outra ala, às vezes a mais inexperiente, outras a mais inesperada, avançou e manteve alteado o pendão.
É hora!
Parece que sempre falaram de nós. O cochicho mais ou menos anónimo não é arte de agora. Outrora, à hora primeira, os que antes nos viram prófugos e dispersos, viram-nos depois juntos e reunidos. E falavam, como diz a primeira leitura, dos Actos, das nossas reuniões. E falavam de nós com admiração. Porque a comunidade — a comunidade reunida! — era continuidade da acção libertadora do Senhor.
Lermos neste domingo nas nossas reuniões eucarísticas a versão idealizada da Igreja transmitida pelos Actos dos Apóstolos é certamente alentador e renovador para o nosso hoje.
Lermos também a sequência das aparições do Ressuscitado à Primeira Comunidade, sem Tomé e depois com Tomé, aquieta e desperta.
A comunidade somos nós e os ausentes de nós; somos todos em caminho comum e pessoal de adesão e confiança na proposta de vida que o Mestre nos estende. A ekklesia somos todos, uns em danças jubilosas, outros sangrando dúvidas; congregamos os afastados e os que se atrasam no cadência do caminho de Emaús; uns, sentem-se isolados e rejeitados; outros, senhores de chaves que só eles sabem.
A Igreja somos nós, para quê dissimular? Mais vale assumir a realidade e fecundá-la com a frescura da Boa Nova do primeiro dia. Somos nós e o Ressuscitado em nós. A nossa carne e o nosso espírito são o lugar dEle no mundo. Os nossos pés são as autoestradas por onde corre hoje o Evangelho; os nossos olhos, os holofotes que iluminam as praças e as ágoras.
Não somos anjos intangíveis e impassíveis, mas barro frágil a que frequentemente falta a cozedura do Amor e o aparo das ásperas rebarbas. Ele que era pedra de bom acabamento foi considerado pelos artistas como impróprio e deslustroso para edificar e acabou abandonado. Mas O rejeitado e havido por rude foi, como só podia, escolhido pelo Pai para pedra de toque da sua Igreja. A nós, barro de muita areia que não estanca o tesouro da água fresca da vida nova, foi-nos entregue o testemunho para sequenciar a corrida. Quando nos derrubam um atleta, nos trapaceiam numa estafeta ou nos prostram na penúltima jornada outra geração da ekklesia se ergue, porque o testemunho não pode ficar inútil e infecundo no duro chão da corrida.
Chama do Carmo NS65 Março 11, 2010

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