sábado, 1 de março de 2014

Boas razões para preocupar-nos


Angústia. Esta semana duas pirralhas que na soma dos anos estavam longe de chegar à maioridade, gritaram-me, ao saberem que era padre: «Não gosto de Deus! Jesus foi inventado pelos padres! Ele esqueceu-se de nós e não dá o que lhe pedimos!». Concordei, ao não saber que dizer, que calar, se rir se chorar. O certo é que, desenvoltas, argumentavam a sem-vergonhice de Deus que nos (as) desampara. É com este episódio de desamparo — não duvido que elas o sentem assim — que me disponho a escrever a Chama. Ainda não sei responder às miúdas, mesmo sendo certo que sei o que Jesus diz com firmeza no evangelho deste domingo (Mt 6:24-34): «Não vos preocupeis!».

Existem então boas razões para andarmos todos preocupados? Sim, existem. E muitas. Dependendo do ângulo em que nos situarmos no miradoiro da vida elas aumentam ou diminuem. Sempre teremos preocupações: a comida não cai do céu, a bebida não vem com a chuva; o dinheiro é sempre pouco e mesmo não trazendo felicidade, ajuda; logo precisamos dele. Tudo isso é certo. É certo e condiz com o argumento das miúdas e parece não condizer com o que Jesus nos diz no evangelho. Além disso, não vemos nós um punhado de ricos ficar cada vez mais rico, e um mar de pobres ficar cada vez mais pobre, sem o suficiente para construir uma vida digna, formar uma família, estabelecer um lar com comida, habitação, roupa, saúde, acesso ao ensino, ao conforto e ao lazer?
E logo, hoje, surpreendentemente, por cinco vezes, Jesus repete-nos: «Não vos preocupeis. Não vos inquieteis com o dia de amanhã!». Não?!
Ser-nos-á possível seguir o ensinamento de Jesus?
Vejamos: o dia de ontem já passou; o de amanhã não sabemos se chegará, pois a ninguém foi dado conhecer o seu porvir. Do dia de ontem, ficaram dores e rasgões e muitos motivos de acção de graças pelos benefícios e ajudas de Deus. Igual aos que partilham connosco pedaços do caminho. Com certeza foi-nos possível aumentar, nem que seja uma migalha, o nosso tesouro no Céu.
Do dia de ontem restam ainda motivos de contrição e penitência pelos nossos pecados, erros e omissões.
Do ontem podemos ainda dizer o que hoje reza a liturgia da Missa: «O Senhor tornou-se o meu apoio, libertou-me da angústia e salvou-me porque me ama.»
O amanhã ainda não é, e, se chegar, poderá ser o dia mais belo que jamais pudemos sonhar, porque foi preparado pelo bom Deus.
Temos, assim, certamente, razões para vivermos angustiados, mas só se for em registo de falta de fé e confiança no Pai. Porém, seja o que seja o dia de amanhã, teremos as graças necessárias para enfrentá-lo e sair vitoriosos.
Mas se o que importa é o dia de hoje, por que Jesus repetiu cinco vezes: «Não vos angustieis», se o que nos parece é que justamente a vida é acosso, angústia e preocupação? Como não há-de angustiar-nos a vida? E se a nós tanto nos angustia com que crueldade a sentirão tantos que pelo mundo fora sofrem o desemprego e a fome?
Enganou-se, Jesus? Talvez não. Se assumirmos que Ele falava aos que já possuíam, talvez não se tenha enganado. Se considerarmos que Jesus falava para os que detêm o mundo nas mãos, obviamente que não se enganou.
Olhemos bem: que parte cabe aos que já possuem? Que esperam deles os que nada têm? Esperam migalhas, obviamente. (Ou algo mais.) Esperam que nos recordemos que através das nossas mãos, através da nossa inteligência e das nossas acções a compaixão pode reverter-lhes, erguê-los e saciar as suas necessidades.
(Já viu as fotos do aparecimento da multidão dos sitiados de Yarmouk, na Síria?)
Com os estômagos cheios é fácil falar de Deus e mais fácil ainda rezar-Lhe. Mas aos que passam fome isso é gozo e mofa. Poderemos nós refugiar--nos no conforto do culto, qual caixa forte do Tio Patinhas? Como encaramos o facto de que parte substancial da humanidade não possa olhar o céu porque busca no fundo da malga as migalhas que tardam em cair da nossa mão?
Nós, cristãos, somos permanente convidados a rever as nossas prioridades, e a alargar as fronteiras do nosso eu. Somos convidados à angústia, não a fim de termos mais ou como haveremos de mais ter, mas para descortinar como se possa chegar a uma partilha mais efectiva e que não humilhe a quem recebe.
Deixe-me ver se acerto nas suas angústias: o índice do colesterol?, da diabetes?, a contaminação do ar?, da água?, o que há-de fazer no fim de semana?, qual a mascarilha do carnaval?, nas férias do verão? — Obviamente, você só pensa nisso por que tem muito e provavelmente em excesso.
(Ao menos comparando com os que nada têm!)
Mas preocupando-se assim jamais acrescentará uma hora à sua vida. Vale mais, portanto, confiar que Deus Pai não nos faltará: que não faltará aos que têm nem aos que de tudo carecem.
Cabe-nos caminhar. E confiar. E sem angústias buscar o Reino de Deus e a sua justiça e o império do seu amor, porque Deus não falta, só Deus não falta. Dele foi o ontem, é o hoje e será o amanhã. Já se deu conta que Deus precisa do seu coração e das suas mãos para dar da Sua misericórdia?

Chama do Carmo I NS 218 I Março 2 2014

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