terça-feira, 15 de maio de 2012

Crónica da Peregrinação aos sepulcros de Santa Teresa de Jesus e de S. João da Cruz – Abril 2012








27 Abril, Sexta-feira
Logo que os peregrinos de Viana chegaram ao Porto, entrámos na igreja Stella Maris para oferecer ao Senhor a nossa caminhada e para implorar a bênção da Senhora do Carmo.
 
Nossa Senhora do Carmo
Que está no seu altar.
Todos lá vamos ajoelhar
E a cantar, a cantar vamos rezar.

Pedimos a uma voz:
Nossa Senhora, rogai por nós!

Senhora, do vosso altar
Lançai benigno olhar
 
Senhora, que és Mãe de Deus,
Olha por nós, os filhos teus. 

E lá partimos certos de que “Peregrinamos, Senhor, incansavelmente procurados por Ti”.

* Éramos desconhecidos, mas sentindo que pertencíamos a uma mesma família e que tínhamos o mesmo objectivo: o enriquecimento espiritual através de Santa Teresa e de S. João da Cruz.
Atravessámos terras de Portugal em direcção a Viseu para recolher um último peregrino, em monótona auto-estrada que mal deixava perceber a beleza da Rota da Luz, das margens do Rio Vouga e das faldas da Serra da Estrela.
Em Fuentes de Oñoro, retemperámos forças e seguimos viagem saudados pelo pueblo Dioslosguarde!
Era disso que precisávamos na verdade…

- Já não éramos tão desconhecidos. Afinal havia tantos pontos em comum, tantas afinidades.
E, entre recitação do terço e cânticos a Maria, nos fomos introduzindo na história do Carmelo embalados no Avé Carmelita.

Ao Monte Carmelo
A Virgem desceu,
Trazendo nos braços
Jesus, Rei dos céus

Avé, Avé, Avé Maria!
Avé, Avé, Avé Maria!

 Entrámos em Castilla y Léon. Atravessámos estradas nacionais que nos permitiram apreciar paisagens de restolhais, ermos e terras lavradas. As aleluias faziam-nos lembrar que ainda estávamos em tempo Pascal e, alternando com as giestas brancas, abriam alas ao autocarro que ia passando.
Ao longe, a Sierra de Gata acompanhava a nossa marcha. E, finalmente, a Peña de Francia indicava-nos o final desta primeira etapa: La Alberca.
Um jantar reconfortante para o corpo, pois a alma vinha cheia (se bem que expectante!). Feito o alojamento, teríamos de regressar ao passado, ao século XIII, numa volta pela povoação que nos deixou boquiabertos:
Devido à obrigatoriedade do uso de velhas formas e técnicas nas obras mais actuais, evitou-se a deterioração deste maravilhoso “casco urbano” que se organiza em redor da Plaza Mayor, com o seu magnífico cruzeiro, e da Iglesia de onde irradiam ruelas típicas com motivos cinzelados nos umbrais das portas principais das casas (cruzes, chaves de S. Pedro, etc)


28 Abril, Sábado
Na manhã do dia seguinte, após alvorada matutina, partimos para o Deserto de São José: o vale paradisíaco de Las Batuecas. Tendo de percorrer cerca de 650 metros em desnível, sentimo-nos cercados por penhascos, hortas fecundas e solos onde crescem à-vontade esbeltos ciprestes. Foi aí, onde um forte muro protege a propriedade, que encontrámos o convento de S. José, dos Carmelitas Descalços (fundado em 1597) que desejam, a todo o custo, manter o lugar como casa de oração e de recolhimento, autêntico deserto espiritual, intenção que nos sentimos obrigados a respeitar.
Depois de breve conversa com fr. Ramon, amável e pertinaz no seu cargo de guardião da clausura, com leve chuva contínua e com regos de água serpenteando os nossos pés, rezámos as Laudes baseadas no salmo 89 “Confirmai, Senhor, a obra das nossas mãos” e no salmo 139 “Tu, Senhor, Tu me sondas, me conheces e me amas”. Suplicámos, ainda, a protecção das nossas famílias: “Senhor, guardai as nossas famílias na Vossa paz”.

* Agora, conhecíamo-nos muito melhor. Algum fio condutor nos aproximava uns dos outros.

Depois de almoço, no Hotel Las Batuecas, partimos em direcção a Alba de Tormes. Atravessámos extensas planícies, com folhas infindáveis de verdura onde imensos rebanhos de cabras e ovelhas e onde manadas de vacas e touros apascentavam alheios à sua sorte. Entre cânticos da Avé Carmelita e a recitação da Coroa de Santa Teresa, aproximámo-nos de Alba de Tormes. Atravessámos o rio que inspirou tantos escritores e poetas e chegámos à Igreja da Anunciação.
Sabíamos que algo de surpreendente nos aguardava. Sabíamos que Teresa de Jesus morrera ali. Sabíamos que o seu coração transverberado estava ali.

Vivo sem viver em mim,
E tão alta vida espero
Que morro porque não morro.
Vivo sem viver em mim.

Vivo já fora de mim,
Desde que morro d’Amor
Porque vivo no Senhor
Que me escolheu para si.
Quando o coração lhe dei
Com terno amor lhe gravei:
Que morro porque não morro

E foi no altar principal daquela Igreja, por baixo do túmulo da Santa, que celebrámos a Eucaristia. Depois do encanto proclamado no Salmo 83 “O meu coração e a minha carne anseiam pelo Deus vivo”, ouvimos o Padre António Lopes Encarnação (nosso companheiro de peregrinação), declarar que iria incentivar à canonização de Isabel da Trindade, beata da ordem do Carmo, que tanto o tinha inspirado ao longo da sua vida de seminarista e de sacerdote.
Seguiu-se uma visita guiada ao Museu de Santa Teresa, onde pudemos apreciar detalhes da sua vida pessoal e espiritual. Especialmente emocionante foi ver o coração de Santa Teresa tão magnificamente conservado e deixando perceber o golpe infringido pelo anjo. Grande surpresa foi ver de perto o seu túmulo quando se abriu diante de nós a magnífica porta (encimada pelo brasão dos Duques d’Alba) no local que terá sido o seu escritório e termos, a dois palmos de distância, tão maravilhosa relíquia!
Dali, partimos para Segóvia.
Continuavam as extensas planícies de Castela. Ora com ermos ora com terras lavradas, com ondulações de terreno quebradas pelos rios Adaja e Voltoya. Finalmente, o Rio Eresma e, ao longe, sempre a nosso lado, o montanhoso Sistema Central e a Sierra de Guadarrama cobertos de manto branco de neve.
Depois de rápido jantar, fomos bater à porta do Convento dos Carmelitas Descalços. Era noite. Estrelada e fria. Sem chuva.
Somos os peregrinos de Portugal”, dissemos alto na incerteza de que a porta nos fosse aberta àquela hora tardia.
Abriu-se. Entrámos. E fomos amorosamente recebidos por alguém apaixonado por S. João da Cruz. Guiou-nos por caminho sinuoso e íngreme, ladeado por lírios que teimavam em desabrochar tanto era o frio que se fazia sentir, por pedregulhos desregulados e curvas que desvendavam a maravilhosa paisagem sobre Segóvia nocturna. Guiava-nos e falava-nos do Santo.
Era noite escura. Lá no alto, as Ermidas e o Cipreste do Santo.
Ali. Ao nosso lado, os cantos e os recantos onde os jovens o procuravam para ouvir as suas instruções e os seus poemas.

Como o veado passaste fugindo
Depois de me teres ferido,
Saí atrás de Ti clamando,
E não estavas, não estavas lá.

Perguntei aos prados e aos montes
Se tinham visto passar
Quem mais que a ninguém eu amo,
E a quem o sinal aí deixou
 
Irei por esses montes e ribeiras
À procura do meu Amado;
Não colherei as flores Nem temerei as feras
Passarei os fortes e as fronteiras.

 Visitámos, em seguida, a cueva onde “só cabe um homem recostado que dele vê os campos, as estrelas e as águas que correm”. De uma das paredes pende o “Cristo crucificado” da autoria de S. João da Cruz (que veio, mais tarde, a inspirar Salvador Dali)
Seguimos, já cá em baixo, para a Igreja de San Juan de la Cruz e admirámos o retábulo: o nicho central preenchido com a imagem de Nossa Senhora do Carmo entregando o escapulário a S. Simão Stock e os nichos laterais com pinturas alusivas à obra do Santo: no cimo, o desenho alusivo ao poema “Subida ao Monte Carmelo”; do lado esquerdo, alusão à “Noite Escura”; no painel da direita, lembrando a “Chama de Amor Viva”; na parte inferior, o “Cântico Espiritual-a fonte” (pinturas do carmelita mexicano Gerardo López Bonilla terminadas em 1982 aquando da visita de João Paulo II).
Em redor do túmulo de São João, sobre o qual colocámos, enternecidos, as nossas mãos entoámos harmoniosamente o cântico:

Oh chama de amor viva!
Que ternamente feres
Da minha alma no centro mais profundo!
Pois já não és esquiva,
Acaba já, se queres; rompe a teia
De encontro tão jucundo.

Ó chama de amor viva! Ó Espírito!

Regressámos ao hotel em estado sublimado. Tinha-se dado a catarse.
*Já nada nos separará! E bem sabíamos por quê.
 

29 Abril, Domingo
Era uma manhã destinada a outro tipo de cultura. Um pouco de história local. Fomos visitar La Granja de San Ildefonso.
Sem chuva (que bom!), mas bastante frio (não importa!)
(Na Idade Média os Reis de Castela, que residiam frequentemente em Segóvia, caçavam nos bosques situados no sopé dos montanhas de Guadarrama.
Henrique IV construiu aí um palácio e uma ermida dedicada a Santo Ildefonso, em 1450. Os Reis Católicos cederam este santuário e as propriedades adjacentes aos monges Jerónimos em 1477. Estes converteram-no numa quinta de recreio.
Filipe V - que fora duque de Anjou e, inesperadamente se tornara rei de Espanha - em 1717 “enamorou-se” do local e, devido ao seu temperamento neurasténico, achou-o o lugar ideal para as suas evasões. Adquiriu La Granja e outros terrenos adjacentes em 1720.
Como convinha a uma casa principesca, o mais faustoso deveria ser o jardim. Não resistiu o rei à tentação de o fazer comparando-o aos que deixara em França)

Assim passámos a manhã, usufruindo do belo Palácio, dos Jardins, das fontes e cascatas.
De tarde, depois de breve passagem pelo centro histórico de Segóvia – o Aqueduto, a Catedral, el Alcázar, a Igreja de San Millán, a Casa dos Picos e ..umas compras – dirigimo-nos à Igreja de San Juan de la Cruz onde foi celebrada a Santa Missa junto ao seu sepulcro.
Em homília clara e contagiante, fr. João traçou o percurso paralelo de Santa Teresa e de São João da Cruz. Tendo demonstrado que a nossa fé se esconde e busca na escuridão, logo fr. Silvino cantou e nos emocionou:

Em noite escura
Com ânsias, em amores inflamada,
Ó ditosa ventura!
Saí sem ser notada,
‘stando já minha casa sossegada.
 
Ó noite que guiaste,
Ó noite amável mais do qu’alvorada:
Ó noite que juntaste
Amado com amada:
A alma em Jesus Cristo transformada!

No momento da Comunhão, um pensamento de S. João da Cruz nos foi fortemente sugerido: “Onde não há Amor, põe Amor e terás Amor”.
Terminámos em redor do sepulcro, suplicando:

S. João da Cruz,
Que só em Deus ardias.
S. João da Cruz,
Ilumine tua noite nossos dias
 
E começámos o regresso. Era já tarde. Numa breve paragem em Salamanca, para jantar, agradecemos aos dois Sacerdotes que nos proporcionaram estes momentos tão únicos da melhor forma ao nosso alcance. Dissemos-lhes, cantando

Nada te perturbe.
Nada te espante.
Quem a Deus tem
Nada lhe falta.
Nada te perturbe,
Nada te espante.
Só Deus basta.

* Somos todos a mesma família. A família Carmelita. Está interiorizado.
Ao chegar ao Porto, antes que os dois grupos de peregrinos se separassem, cantámos em uníssono:

Boa noite, boa noite Maria
Boa noite minha Mãe!

O dia foi lindo p’ra mim
Foi lindo p’ra Ti: Harmonia.
                
Vivemos na mesma cruz
Juntos com Jesus: na alegria

Santa Madre Teresa de Jesus, rogai por nós; Santo Pai João da Cruz,rogai por nós!

Maria Gagliardini, Porto.

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