sábado, 29 de dezembro de 2012

O Menino da flauta

Um ano mais os claustros do nosso convento abrem-se para acolher a exposição de presépios.
Daqui e dali, gente conhecida e da casa, e outra desconhecida e afastada, vão colaborando
na sua construção. Claro que é um mostra modesta, simples, mas não isenta de calor e carinho. Os presépios são de crianças e de adultos, de pedra e de papel, de tela e de barro,
de madeira, clássicos e mais recentes, nucleares e com anjos, pastores e banda de música.
São mais de setenta e cinco presépios. Há por ali mãos de gente consagrada, e outras de quem simplesmente ama o mistério da Santa Incarnação. Alguns são de meninos, de escuteiros, de famílias, de gente pobre com arte. E chegaram outros de longe, de Angola, Espanha, Indonésia. Alguns grupos pastorais da Comunidade encheram-se de brios e aí apareceu um presépio: reconheço ali o dos leitores, dos terceiros, dos ministros da comunhão, do grupo da Bíblia. O GAF também colaborou.
Conheço a história de muitos ou quase todos, sei como chegou este e como veio aquele. Por que trajam uns à minhota, e outro, indiferenciado, é de materiais reciclados. Todos, todos, feitos com amor. Por isso,muito obrigado a todos. Obrigado também a quem carregou as mesas e as colunas, apanhou o musgo, deu nós nos fios de seda, varreu o chão, encontrou recantos e as melhores soluções. Pouco ou nada se constrói sozinho. Onde muitos colaboram tantos podem depois comprazer-se e apreciar o Mistério.
É assim com a nossa mostra de presépios que mais uma vez construímos.
Passando por entre tantos, pode cada um eleger o seu preferido, encantar-se com os materiais e a disposição das figuras e até, quem sabe, criar uma história.
Eu tenho o meu e a minha história.
Não sei de datas, sei de factos. E eles ajudam a deitar um olhar outro ao mistério da Santa Incarnação.
Em um dos anos finais do século passado, segundo julgo, um rapaz vianense visitou a Palestina. Posso conjecturar o que leva um rapaz da verde Viana ao pó da Palestina, mas só posso conjecturar. Imagino que ir duma terra tão verde para outra tão cor de pó e de pedra, tão seca e tão pobre, sabe a tudo menos a maquilhagem. Nem imagino se por aquelas alturas existiam relações diplomáticas, se o rapaz entrou clandestino ou foi apoiado num turismo programado. Sei que não se lhe quebrou o encanto quando calcorreou aquela terra mirrada, aquelas estradas mal amassadas em pó e pedra. Sei de viva voz que a incursão soube ao frescor da surpresa, sei que naquela terra pobre nada havia que se vendesse, não havia souvenirs que se repetissem como fotocópias. Não, não havia. No que diz respeito a desejados keepsake o rapaz não viu nada que prendesse o olhar, a não ser o pó que se amassa com o suor e se cola às pessoas e às folhas das figueiras, ou então uma pedra que lembrasse uma Intinfada recente. Regressava desistente quando numa berma um palestino tinha aberto um pano tribal e expusera uns paus. Uns paus?, ou umas flautas? Sim, eram flautas e até tocava uma donde arrancava sons de encanto. (E é assim que os homens mesmo quando são pobres encontram formas simples de manifestar sentimentos e bailar...)
E assim foi que no fundo da mochila, embrulhadas num keffieyh vieram para o Minho dois paus com furinhos toscos, que, se bem soprados, nos dão música de adormecer e sonhar. E por aqui ficaram como ficam as memórias e os souvenirs de viagens.
O rapaz cresceu, hoje é marido, pai e artista. Com a filha ao colo as entranhas volveram-se ainda mais mansas. Lembrou-se da flauta, foi buscar um Menino de barro de Barcelos e juntou tudo numa caixa do IKEA, da Finlândia, que diz «Fado», pôs-lhe duas luzias LED, que imagino da Coreia, recortou no centro um círculo, encheu-o de palha da Estremadura espanhola e trouxe para a exposição. Quando à noite tudo se apaga brilha no escuro aquela Gruta-Nações-Unidas e eu aproximo-me devagarinho e digo baixinho com  o coração: «Boa noite, meu Menino pobrezinho. Felizmente encontraste uma caixa de cartão onde te aconchegar, um fado para te encantar, umas palhinhas para te aquecer.
A Ti, Rei do Universo, as nações dão do que lhes sobra. Aceita o que não precisamos e que a nossa vida seja um louvor que embale os sonhos de paz que sonhaste para o nosso mundo tão redondo e tão cheio. Amen.»

Chama do Carmo I NS 170 I Dezembro 30 2012



1 comentário:

Anónimo disse...

Um menino tocava sem parar
E eu não sabia se tocava lá fora
Ou dentro do meu coração.
Os pequenos dedos tentando fechar os espaços
Para então sair o som,
A canção que queria.
E de repente comecei a pensar
No menino e na sua flauta doce,
Nos pássaros que paravam para escutar,
Como a flauta era boa para
Tocar com os passarinhos!
Era um menino
Que tocava a sua flauta
Fazendo mágica para as asas.
Pergunto-me
Se ainda ele toca
Em algum lugar,
Seja de terra, de céu ou de coração,
A Sua flauta voadora.