domingo, 19 de agosto de 2012

Mensagem do Prior Geral Frei Saverio Canistrá, por ocasião dos 450 anos da fundação da reforma teresiana


Comemoramos este ano um aniversário particularmente significativo: 24 de Agosto marcará 450 anos desde a fundação do Carmelo de São José de Ávila e, portanto, o início da reforma de Teresa. Também o Santo Padre quis expressar a sua alegria e a de toda a Igreja por causa de tal celebração, pelo que no dia da Festa de Nossa Senhora do Carmo, tornou pública uma mensagem rica de doutrina e espiritualidade teresiana.
 Ao pensar que a nossa família religiosa celebra 450 anos, o primeiro sentimento que preenche os nossos corações é o de gratidão ao Senhor pela fidelidade do seu amor, juntamente com louvor pelas grandes coisas que ele tem feito em nós. Certamente Teresa deu a Jesus, mas Jesus deu-se muito mais a Teresa, e se continua a dar a toda a família. Devemos exortamos para não nos esquecer-mos ("Lembre-te, Israel!") quantas graças nos deu de facto por nos ter chamando a fazer parte desta história e considerar-nos capazes de a testemunhar no presente e fazê-la crescer no futuro, de forma incessante – como Teresa nos ensinou – sem nunca considerar concluído. Nenhum de nós estaria aqui a assumir esta responsabilidade sem a graça do dom de Deus, sem a manifestação do seu amor misericordioso e de sua livre e gratuita iniciativa.
 Outra área de reflexão que devemos considerar é o mais recente capítulo da nossa história. A nossa Ordem celebrou em 1962 o quarto centenário da sua fundação. Nesse ano iniciava-se o Concílio Vaticano II, que iria marcar, de muitas maneiras, o início de uma nova era na história da Igreja. Os 50 anos que passaram desde então são uma etapa do nosso caminho, susceptível de análise histórica e de discernimento espiritual. Mudamos muito ao longo destes anos, mas ainda continua a vibrar em nós a mesma vocação e paixão de sermos filhos e filhas de Teresa de Jesus. Nós todos sabemos que nem todas as mudanças têm expressado a criatividade de carisma, tal como nem a vontade de conservação tem sido uma manifestação de lealdade genuína. Mas acima de tudo, descobrimos que esta realidade complexa e por vezes contraditória, está hoje cheia de caras novas, as novas gerações nascidas em todo o mundo nos últimos cinquenta anos, com diferentes sensibilidades e experiências. Na nossa realidade, estas novas gerações querem expressar quem são e o que têm, fragilidade e força, riqueza e pobreza, intuições e obscuridades, entusiasmo da juventude e a sabedoria da velhice.
 Teresa tinha 47 anos quando o sino do Carmelo de São José repicou pela primeira vez. Tinham passado mais de dois terços de sua existência! Com idade considerada avançada – naquela época muito mais do que na nossa –, ela iniciou uma aventura completamente nova, cheia de riscos e incógnitas. Sabemos que duas forças a ajudaram a superar qualquer resistência humana: A força da experiência de Deus e a força da paixão pela Igreja e um mundo em choque histórico. Estas são, ainda hoje, as forças que nos podem encorajar e ajudar a reemprender o caminho, ou melhor, a abrir uma rota através de uma paisagem que, às vezes, aparece como um deserto vazio e sem trilhos, no qual nos sentimos perdidos, e outras vezes, como uma floresta impenetrável em que é impossível encontrar um caminho que nos faça avançar.
 Na sua aventura, Teresa não contou nem com amigos poderosos nem com grandes recursos económicos. A sua condição de mulher foi causa de inúmeras dificuldades e limitações. Houve momentos em que o projecto da nova fundação deve ter parecido simplesmente impossível, razão por que se queixou ao Senhor, pedindo-lhe coisas impossíveis (cf. Vida 33, 11). A história da primeira fundação é um emaranhado de fadigas, dúvidas, perseguições e obstáculos de todos os tipos, mas, ao mesmo tempo, de consolações, encontros providenciais, ajudas inesperadas, especialmente de certezas interiores continuamente reavivadas. Assim, a sua história tornou-se uma história de salvação, cujo memória deve ser lembrada de geração em geração, para continuar a extrair dela força e inspiração. Ao destinatário do Livro da Vida, o Pe. Garcia de Toledo, deu liberdade para o destruir, excepto a história da primeira fundação:
 «Assim, eu peço a Vossa senhoria pelo amor de Deus, que se lhe parecer excessivo o que aqui escrevo, no que diz respeito a este mosteiro, vossa mercê o guarde, e morta eu, o dê às irmãs que aqui estiverem para as incentivar muito a servir a Deus, para que não caia o que começou, mas siga sempre em frente, ao verem o quanto ajudou Sua Majestade a consegui-lo através de coisa tão baixa e ruim, como eu.» (Vida 36, ​​29).
 É neste espírito que, também nós, depois de 450 anos, voltámos aquela experiência fundante, em que nascemos. Se o Senhor empenhou tanto de si para que aquela obra se cumprisse, continuará a fazer de modo a que não se estrague mas, pelo contrário, sempre progrida. Teresa estava muito interessada em salientar que tudo o que fora feito não dependera dela, mulher imperfeita e pobre. Mas que Deus apenas se serviu dela como de um instrumento. Teresa não usa aqui de falsa humildade; como sempre, ela diz "coisas muito verdadeiras" (Vida de 40, 3), e di-las-á de uma maneira especial acerca de um acontecimento tão importante como a reforma do Carmelo. Isso é obra do Senhor, em cujo serviço ela se colocou, não sem dúvidas, medos e resistências. Mas, enfim, a Sua graça foi mais forte. Esta obra amada por Deus, esta preciosa jóia com que quis adornar Teresa, e nela toda a Igreja (refiro-me à famosa visão narrada no Livro da Vida 33, 14) foi colocada nas nossas mãos: O que faremos com ela? Qual será a nossa resposta ao convite a que nos chama a Santa Madre desde as suas páginas autobiográficas? Tantas vezes falamos hoje sobre a crise na Vida Religiosa e das suas dificuldades, especialmente no Ocidente, devido à falta de vocações e ao envelhecimento das comunidades, mas ainda mais para uma perda geral de motivação e uma crise de identidade. Eu não quero minimizar estes problemas que experimentamos diariamente, especialmente aqueles que são chamados ao serviço da autoridade. Sem dúvida, a crise que estamos a atravessar é histórica e não se poderá sair dela sem novas percepções e mudanças profundas. A questão que eu acho essencial é: de onde podem vir as novas intuições? Onde vamos buscar a força que exigem estes novos tempos? Tenho-me apercebido, que neste período de crise económica está a ter muito eco um pensamento que Albert Einstein escreveu durante a Grande Crise de 1929. Aparece citado em inúmeras páginas da web e blogs, e até a encontrei numa carta que me escreveu uma irmã. Dizia Einstein, em 1935: «A crise é a maior bênção para as pessoas e as nações, porque a crise traz progressos. A criatividade nasce da angústia, como o dia nasce da noite escura. É na crise onde há a descoberta, invenção, e as grandes estratégias. Quem supera a crise, supera-se a si mesmo sem ter sido vencido. Quem atribuiu à crise os seus fracassos e dificuldades, trai o seu próprio talento e dá mais valor aos problemas do que as soluções. A verdadeira crise é a crise da incompetência. O inconveniente das pessoas e das nações é a preguiça na busca de soluções e saídas. Sem crise não há desafios, sem desafios a vida é uma rotina, uma lenta agonia. Sem crise não há mérito. Está na crise o que de melhor emerge de cada um, porque sem crise todos os ventos são apenas brisas leves. Falar de crise significa incrementá-la e calar na crise é exaltar o conformismo. Em vez disso, trabalhemos duramente. Acabemos com a única crise perigosa, que é a tragédia de não se estar disposto a lutar para a superar.»
 Estas são, sem dúvida, palavras de encorajamento e de esperança, que nos convidam a nos levantarmos de novo e darmos o melhor de nós mesmos, sem nos deixarmos vencer pelo medo e pelo desânimo. É possível que para a economia e a política estas palavras acertem no branco e indiquem as formas adequadas para superar a crise. Apesar disso, eu não acho que se possa dizer o mesmo sobre a crise da Vida Religiosa e da vida espiritual. Apoiar-se nos recursos da vontade e da inteligência do ser humano é justo; convidar a desenvolver projectos eficazes e a desenvolver uma criatividade que nos torne capazes de enfrentar os desafios do presente, faz sentido e é certamente razoável. Contudo devemos ser conscientes que não são os nossos projectos que nos salvarão. Precisamos beber de uma fonte de água viva que brota de veias mais profundas onde homem nada faz, mas que se deixa fazer, onde não escolhe, mas aceita ser escolhido, onde não experimenta a sua sabedoria e a sua força, mas experimenta a sua fraqueza e a sua debilidade. O caminho de saída não se encontra voltando a trás, à situação precedente ou de projectando-se para a frente, mas aprofundando a crise presente, descendo às suas raízes, a essa profundidade, onde as coisas se veem de um modo diferente, onde a inquietação e o medo se acalmam e a oração do pobre começa a subir mais pura, mais humilde e mais verdadeira. Desde a crise podemos retomar o caminho.
Este caminho que Teresa seguiu até ao último dia da sua vida, o caminho do mistério pascal, só se pode iniciar quando já se experimentou que os outros caminhos são becos sem saída ou trilhos que se perdem no nada. É um caminho que tem como cajado a oração e o alforje o perder-se a si mesmo e por isso se parece ao caminho dos discípulos de Jesus, chamados a deixar tudo e seguir Aquele em que eles tudo acreditavam e esperavam. Um caminho no qual –como escreveu o Bem-aventurado Newman no seu magnífico poema "A coluna de nuvem" – não é para ver à distância, mas apenas um vislumbre do pequeno passo a que somos chamados a dar a cada dia.
 Talvez seja isto o pouco que em nos é possível que Teresa escolheu cumprir no momento em que tomou consciência da gravidade da situação em que a Igreja e o mundo se encontravam, e da missão que o Senhor lhe estava a confiar. Sei que pode parecer pouco, mas é precisamente do pouco e do pequeno, para não dizer, do nada, donde Deus tudo criou. E disto tudo temos a obrigação de ser testemunhas com Teresa, tal como Teresa o tem sido desde aquele longínquo e ainda muito próximo 24 de Agosto de 1562.
Frei Saverio Cannistrà, Prep. Geral

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