sexta-feira, 24 de agosto de 2012

Narração da fundação do Carmelo de São José de Ávila (V)

«Tudo se fez debaixo de grande segredo, porque, a não ser assim, nada se poderia fazer, pois o povo estava contrário, como depois se viu. Ordenou o Senhor que adoecesse um cunhado meu, sem cá estar sua mulher e, em tanta necessidade, deram-me licença para o ir tratar. Assim com este motivo, de nada se desconfiou, embora nalgumas pessoas não se deixasse de suspeitar qualquer coisa. Contudo não o acreditavam. Foi coisa de espantar, pois meu cunhado não esteve doente além do tempo necessário para concluir o negócio; e quando foi preciso que tivesse saúde para eu me desocupar e ele deixar desocupada a casa, logo o Senhor lha tornou a dar, do que ele estava maravilhado.

Passei muito trabalho a instar com uns e com outros que se admitisse a fundação; e com o enfermo, e com os oficiais para que se acabasse a casa a toda a pressa, e tivesse ar de convento, pois faltava muito para se acabar. E a minha companheira não estava aqui, pois pareceu-nos que era melhor ausentar-se para mais dissimular. E eu via que tudo dependia da brevidade, e isto por muitos motivos: um, era porque temia que a toda a hora me mandassem voltar. Foram tantas as coisas a dar trabalhos que pensei se seria esta a cruz, conquanto me parecesse que era pouco para a grande cruz que eu tinha entendido do Senhor que havia de passar.
Pois, estando tudo terminado, foi o Senhor servido que, no dia de S. Bartolomeu, tomassem hábito algumas. Pôs-se o Santíssimo Sacramento, e com toda a autoridade e força ficou fundado o nosso mosteiro do nosso gloriosíssimo Pai S. José, no ano de mil quinhentos e sessenta e dois. Estive eu a dar-lhes o hábito e outras duas freiras da nossa mesma casa que acertaram a estar fora do mosteiro da Encarnação. Como nesta, em que se fez o convento, era onde estava meu cunhado, que a tinha comprado, como tenho dito, para melhor dissimular o negócio, eu estava ali com licença. Nem eu fazia coisa sem ser com o parecer de letrados, para não fugir a um só ponto da obediência. Estes, como viam isto ser por muitos motivos muito proveitoso para toda a Ordem, embora eu andasse com segredo e acautelando-me para que não o soubessem meus prelados, diziam-me que o podia fazer. Por muito pouca imperfeição que me dissessem que era, mil mosteiros me parece que deixaria, quanto mais um. Isto é certo porque, embora desejasse a fundação para mais me apartar de tudo e guardar minha profissão e chamamento com mais perfeição e clausura, de tal maneira o desejava, no entanto, que se entendesse que era mais serviço do Senhor deixá-lo de todo, tê-lo-ia feito – como o fiz da outra vez – com todo o sossego e paz.
Foi pois para mim como estar em glória, ver colocar o Santíssimo Sacramento e que se remediaram quatro órfãs pobres (porque não se recebiam com dote), e grandes servas de Deus. Logo de princípio foi isto que se pretendeu: que entrassem pessoas que, com seu exemplo, fossem fundamento em que se pudesse efectuar o intento que levávamos de muita perfeição e oração. Via, assim, realizada uma obra que eu tinha entendido que era para serviço do Senhor e honra do hábito de Sua Gloriosa Mãe, que estas eram as minhas ânsias.
E também me deu muito consolo o ter feito o que o Senhor tanto me mandara, e mais outra igreja neste lugar, dedicada a meu Pai, o glorioso S. José, pois que não havia outra. Não que a mim me parecesse que nisto tinha feito alguma coisa, que nunca tal me parecia, nem parece. Sempre entendo que tudo é obra do Senhor; e o que fazia da minha parte, ia com tantas imperfeições, que antes vejo haver de que me culpar e não de que me agradecer. Contudo, era-me grande gozo ver que Sua Majestade se servira de mim,
como instrumento duma tão grande obra sendo eu tão ruim.
Estive assim com tão grande contentamento, que estava como fora de mim, em elevada oração».

(Vida 36, 1.6)

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