A Palavra de Deus deste domingo é pronunciada sobre nós e dela brilha noite e luz. Na primeira leitura brilha a noite de Abraão e a luz de Deus. No Evangelho resplandece a luz do rosto de Jesus e a noite dos três discípulos preferidos. Parece que Abraão costumava encontrar-se com frequência com Deus. Eram amigos. E isso diz muito de dois seres. Mas aquele dia fora bastante brumoso para o nosso pai na fé, que não teve uma vida fácil e ainda por cima lhe coube iniciar um caminho de acreditar. Abraão falava frequentemente com Deus mas não se fazia luz na sua vida. Vivia em crise profunda, até que um dia...
Até que um dia se queixou ao Senhor Deus de ter seguido a Sua proposta, de se sentir cansado e velho e não ver descendência alguma. Claro está que Deus é Deus do amor generoso (que promete e dá uma terra); do amor fecundo (promete e dá uma descendência); do amor gratuito (só Ele sustenta a aliança). Mas Abraão queixou-se, porque não via o que julgava seu direito ver. Abraão nada via.
Quando Deus falara a Abraão pela primeira vez, já ele não era um homem novo. Também não era velho, era conformado. Era pastor itinerante, guiando um grande rebanho (não uma família ou um povo!) para as melhores pastagens. Tinha um clã por onde se estendiam as raízes do seu sangue, vários criados, um intendente da sua confiança, uma esposa com suas criadas; mas não tinha filhos. Nem tinha já esperança de os ter. Ora, que Deus surja na vida dum homem abastado e rijo, já entradote nos anos do outono, prometendo-lhe descendência isso é mesmo coisa de Deus e só responsabilidade sua. O homem até pode ter acreditado, quanto mais não seja por ser mais desejável entregar a vara do comando a um filho que a um estranho, mesmo de confiança. Ora, se foi Deus que veio prometer prosperidade a um homem próspero e um filho a quem não o tinha, porque é que ao fim de vinte e cinco anos ainda lho não concedera? É certo que a fortuna de Abraão não diminuira, mas haviam-lhe diminuido as forças, a vivacidade e a luz dos olhos. Eram mais que razões para se queixar de Deus, que lhe frustrara o futuro depois de haver reacendido a chama da esperança!
Era noite, justificadamente. Saído da sua pátria por obediência a Deus, Abraão estava mais desamparado que nunca. E a cada noite que se abria sobre a sua cabeça, desde a porta da sua tenda, como se fossem ovelhas, Abraão, sem nunca chegar ao fim, recontava as estrelas que já conhecia pelo nome. Mas pelo nome não tratava ainda um filho seu! Deus ainda lhe não dera nada, nem terra nem filho! Por isso, numa certa noite escura, uma daquelas que parece que arrancam a alma e nos entopem as forças, ele gemeu e queixou-se.
(Mas apesar do queixume) Abraão creu, esperou contra a esperança, acreditou contra todas as probabilidades, e por isso Deus o teve por amigo.
Era noite? Era. Nada compreendia? Nada. Tudo confiara? Sim, tudo. Já não tinha apoios? Não, humanos não tinha nenhuns. Essa é então a hora de Deus. Tendo caído o sol, isto é, sendo noite, com um véu negro sobre a alma e abatido pelo desânimo, as aves da rapina rondam o homem da fé que de quando em quando levanta a cabeça e de cajado na mão espanta as garras que querem cravar-se nas carnes que hão-de testemunhar o pacto de aliança. Vejo esse cajado volteando no ar, e vejo que ao parar logo ganham espaço e vantagem os que enchem o papo à custa do rapinanço. Como é pesado o torpor e difícil de manter viva a fé e forte o braço!
É noite.
E no meio dessa noite em que parece que Deus se demora, eis que, inesperadamente, contra todo o desejo e justificação Deus passa como uma tocha luminosa!
É luz.
Vejo dispostas na terra as metades da novilha, da cabra e do carneiro e vejo as aves, rola e pombo, e vejo a espera de Abraão defendendo as carnes que hão-de testemunhar a aliança entre os dois amigos, e vejo vindo O que parecia que não vinha, e vejo que Abraão viu que Ele veio luminoso iluminando a noite.
Passar por entre as carnes divididas dum animal significava um pacto: que assim ficasse dividido ao meio quem quebrasse tal pacto! Deus, tocha luminosa fendendo a noite escura de Abraão, passou e não obrigou Abraão a passar. Sinal que só Deus é luz e sustenta a Aliança que faz connosco e não a cobra ao seus amigos. Que belo sinal!
E que pensar dos três amigos de Jesus que com Ele subiram à montanha para rezar e acabam dormindo? Mas que coração não ficaria pesado ao ouvir do Amigo a revelação da sua paixão e morte tão cruéis? Por isso, naquela hora inesperada e inóspita eles dormem de desânimo, porque, afinal, a conversa de Jesus com Moisés e Elias confirma a confidência anterior. É noite. Tudo justifica o sono dos discípulos.
Se alguma coisa une a primeira leitura e o Evangelho, essa coisa é a noite, o sono e a luz. A noite que é noite é o pano de fundo para o sono e a descrença dos humanos, e é também o pano de fundo para o brilho da luz de Deus. No desamparo e na rendição humanos brilha a tocha de Deus, que surge para sustentar unilateralmente a Aliança e lançar brilho sobre as nossas existências baças. Assim foi com Abraão, assim foi com os três discípulos preferidos de Jesus, assim é connosco: o caminho da fé é de noite. Aí só brilha a luz do rosto de Deus!
Chama do Carmo I NS 59 I Fevereiro 28, 2010
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